Voltei esta semana do quarto Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatura no Sertão (CLISERTÃO), realizado pela Universidade de Pernambuco, na cidade de Petrolina.  O evento, de 7 a 11 de maio, uniu em mais de cem ações, setenta e duas escolas de Petrolina e Juazeiro (BA), apresentou quarenta e sete convidados de nove países que se debruçaram sobre questões emergentes no que diz respeito à educação e formação do leitor. Um desses convidados foi o escritor mexicano Alejandro Reyes, autor de A Rainha do Cine Roma e tradutor para o espanhol do Manual Prático do Ódio, de Ferréz.

Nos últimos dias li três livros do paulistano. Capão Pecado, Manual Prático do Ódio e Deus foi almoçar. O primeiro doei em Petrolina para um grupo de estudos sobre autores da periferia que se constituiu dentro da Universidade Estadual da Bahia, em Itaberada. O segundo ficou em mãos da mestranda Mércia Amorim que estuda a representação masculina na obra de Sergio Vaz, que também trata do cotidiano das periferias. E o terceiro esqueci (de maneira proposital) no air bus 320 que me trouxe de Brasília a Cuiabá, no último sábado.

Ferréz

Em Capão Pecado, o bairro do Capão Redondo, na zonal sul de São Paulo é retratado pelo olhar de um narrador que se acostumou à marginalidade urbana da maior metrópole da América Latina. Ferréz, em uma linguagem crua que cruza elementos do rap com a narrativa que escorre de uma lâmina sangrando, vai construindo seu objeto com um distanciamento estereotipado que prolifera na grande mídia. Seu narrador nos põe em contato com um discurso que afirma, de maneira peremptória que

O respeito na quebrada sempre prevalece para aqueles que sabem se impor na humildade, e foi isso que Capachão procurou fazer desde o primeiro dia em que tinha mudado para o Jangadeiro (Ferréz, 2013, p. 33).

Mas nesta obra ainda não se apresentava com todo o vigor o autor que, de alguma forma, criava uma nova maneira de narrar a existência de homens e mulheres excluídos na área urbana e estereotipados na literatura brasileira. No livro traduzido por Alejandro e que circula pelas livrarias mexicanas, a crueza de uma escrita impregnada pelo ódio, o desprezo da classe média e da elite calhorda ao convívio com o diferente enoja o leitor de bom agouro, aquele para quem o mito de democracia racial é tão volátil e que percebe como as relações se dão de maneira superficial e excludente em todos os níveis.

As balas que atingiram a Mariele Franco e ao Anderson, que pilotava a nave transformadora de nossa sociedade em direção ao um mundo mais justo e equânime são as mesmas disparadas em quantidade no Manual Prático do Ódio. E são elas que corporificam o discurso. Senão vejamos:

Paulo era negro, sabia tudo sobre a história de seus ancestrais, conhecia de cor as histórias fantásticas de Zumbi, de Anastácia e era apaixonado pela rainha Nzinga, sempre se imaginava contando a história dos verdadeiros heróis brasileiros para seus filhos, falaria da coragem e do talento de Clementina de Jesus, e contaria para a pequena sobre todos os sofredores que ajudaram a construir tudo o que eles estavam vendo desde que nasceram, mostraria a história dos oprimidos que nunca se entregaram, mas desmantelaria para os futuros filhos os mitos falsos dos opressores, os mesmos falsos heróis que matavam índios e negros e depois ganhavam estátuas espalhadas pela cidade (Ferréz, 2014, p. 86).

Tenho poucas certezas quanto ao que acontecerá nas urnas neste 2018. Mas de uma coisa tenho a absoluta certeza, embora gostaria muito de estar enganado. Aliás, torço por isso. Mas creio que a bancada evangélica irá aumentar significativamente. Por uma razão pela qual o autor do livro aponta com muita segurança, pelas mãos de um narrador onisciente que descortina os bastidores do poder e as relações entre facções da polícia e o crime organizado: “Nesse mundo de hoje o que dá dinheiro é religião e doença” (Op. cit., p. 115). E é esse retrato, cada vez mais presente, sobretudo nas grandes cidades, que ocupa as páginas de inúmeras obras que nos igualam a muitos países massacrados pelo que chamam de globalização e que Frei Beto já dizia em 2001, quando pude ouvi-lo na Jornada Literária de Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, chamar de norte americanização do planeta. Pois o manual insiste: “Já Leandro não realizou o sonho de ouvir uma letra de rap sua na rádio, morreu numa suposta troca de tiros com a Rota, pena que estava desarmado, levou desvantagem (Op. cit. , p. 156).

O crescimento de igrejas pentecostais na periferia das grandes cidades é uma realidade que, a partir dos anos setenta, vem tornando-se cada vez mais forte, até pelo fato de que muitas dessas comunidades sempre foram desassistidas pela igreja católica. O poder público, ausente nessas e muitas outras frentes de coletivismo tem sido açoitado por iniciativas de poder paralelo que não se confinam somente ao narcotráfico e distribuição de drogas. A política tem sido o novo braço da propagação da fé e a literatura tem servido como contraponto, embora contra o canhão não se consiga mais se combater apenas com as flores. Ferréz sabe disso, mas nem por isso se furta à insistência que a palavra oralizada e escrita propicia.

Hoje passaria o dia com isso na cabeça, quem sabe deveria escrever de vez em quando, embora soubesse que não compensava ser escritor, certeza adquirida pelo tanto de entrevistas que havia lido, a parte financeira sempre pesava para todos, estranho, ela achava, um ator ganhar tanto, para falar algo que outro escreveu, e o que criou tudo aquilo vivia tendo uma vida medíocre e totalmente falida, mas quem disse que a vida era justa? (Ferréz, 2012, p. 13).

Termino esta crônica com três frases de Deus foi Almoçar, que acho emblemáticas para pensarmos nessas questões:

  • A língua é o chicote do corpo (p. 69);
  • Chegou em casa, foi logo tirando o sapato, suas pálpebras fizeram o resto (p. 109).
  • Todo mundo é feliz quando come (p. 115).

REFERÊNCIAS

Ferréz. Deus foi almoçar. São Paulo: Planeta, 2012.

_____. Capão pecado. São Paulo: Planeta, 2013.

_____. Manual prático do ódio. São Paulo: Planeta, 2014.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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