Amanda Helena

Acabo de ler um texto sobre as infelicidades amorosas de Clarice Lispector e lembro de meu último vexame. A deusa da prosa sofisticada até onde sei não era dada a bebida.
Como abstêmios lidam com esse trator que nos esmaga, chamado amor, sem o mínimo anestésico? A sequela é democrática, isso sei, mas como dão conta?

Imagino também como deve ser chique ter dor de guampas tomando um só drinquezinho, cai uma lágrima tímida do canto do olho, nem chega borrar maquiagem, uma simples passada de dedo ou lenço atenuando sentimentalidades, é finesse demais para um coração latino cânceriano como o meu.

Abstêmios e controlados etílicos me causam uma certa afronta, gente assim agrava as vergonhas dos emocionados com arroubos.

Nunca me acertei com essa coisa elegante no manejo de minhas paixões, primeiro por ser sujeita rústica de perifa, segundo por motivo óbvio de que falta dinheiro ao pobre, mas nunca faltou exagero.

Tudo de pobre é exagerado, do prato caindo comida, às demonstrações de afeto, a quantidade de bebida vagabunda que dá sudorese.

Minha última incursão de somellier hipossuficiente deu se num porre de Copão sem eufemismo algum.

Copão para quem não conhece as adegas da quebrada, trata se de 700 ml de uma mistura de Whisky de procedência ultra duvidosa e energético, um coquetel molotov nas vísceras gástricas e sentimentais.

Tomei dois, porque um seria coisa de gente contida e como disse, não sou dessas.

Claro que uma sujeita musical, com os nervos à flor da pele não faria essa lambança num silêncio sepulcral.

Começou com Malaguenha Salerosa, passeou por Nelson Gonçalves e desaguou num fado violento.

Fado é violento demais para quem se encontra fragilizado por cachaça e coisas pretéritas presas na garganta.

Ah, meus queridos, a sofrência lusitana deixa nossos miolos moles, dramáticos e fanfarrões, só Talia interpretando Maria do bairro consegue encenar com perfeição um cérebro fadista turbinado.

Três horas da manhã já estava podendo tudo pelo copo que fortalecia, Piedade Fernandez no último, um convite pra lembrar de gente a não ser lembrada, gente que em outras feitas ouvia fados comigo. Culpa dos portugueses que vieram com a coisa da invasão e dessa choradeira sonora.

Gente que me bloqueou de todas redes sociais por não saber lidar com próprio sentimento e preferiu preservar a classe e o fígado.

Aprendi ser inconveniente por email, por algum canto a gente invade, precisava falar.

Despejei um amontoado de besteiras no Hotmail do rapaz, tudo hot, e uma exímia ortografia do Embriaguez clássico, único idioma que estava conseguindo digitar. Descobri esse meu dote bilíngue ao acordar com a cabeça rodando tentando traduzir declarações de minha lavra, umas consegui, outras deixei sob licença poética.

Corri no Google para verificar se havia a possibilidade de também estar bloqueada no Email e descobri que quando isso ocorre as mensagens viram SPAM.

Virar SPAM na vida de alguém é o fundo do poço e da perda da dignidade na modernidade.
Como se houvesse muita dignidade abaixo da linha do Equador. Eu não vou mais falar dos portugueses, vou assumir a minha bronca. Que diferença faz ao mundo eu perder minha dignidade?

Até a linhazinha divisória carrega dor no nome sem objeções.

Muito orgulhosa seria se negasse meu mundo dolorido dividido entre o antes e depois do guapo fadista que foi ressuscitado com aspersão de etanol.

Contudo, há um consolo para ridículos de ressaca, é a humanidade que insiste em dar o outro lado da face numa época de minimalismos sentimentais e vencedores do comportamento. Uma espécie de competição de quem disfarça melhor.

Decididamente sou uma indisciplinada da São Silvestre passional.

Manter a disciplina no amor é prova que a gente só se descobre vencedor depois de passar pela linha da garrafa.

Um troféu para os disciplinados, por aqui crônica de perdedor que segue e engov.

Amanda Helena, bauruense, graduada em Direito. Participou da Antologia Cães Bélicos do grupo Expressão Poética em 2020 e publicações em revistas, com textos e pitacos musicais. Lançando primeiro livro no ano pandêmico de 2021 , Cavalos insones em Galopes Alados, de forma independente, previsto entre mês de maio e junho. Mãe de Talles, Thaís e Thomas. Sem nenhum grande feito no currículo, exceto ser exímia bebedora de cerveja e pós graduada em conversas com felinos. Ama música e uma treta libertária, incorrigível pessimista esperançosa que se arrisca na escrita para acalmar o coração canceriano intenso e destrambelhado.

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