Até seus olhos assustaram-se quando acordou. Aqueles olhos azuis, cristalinos como a alma, não eram capazes de mentir. Narinas abertas, a respiração ofegante. Uma grossa veia que cruzava-lhe a testa de leste a noroeste. Tentou erguer-se, mas uma dor lancinante quase rasgou suas entranhas. Gritou alto. Tentou erguer a cabeça, e depois de uma generosa dose de dor conseguiu, por fim, enxergar seus miúdos dedos do pé, mexendo alegremente por fora do alvo lençol. Desceu a cabeça e respirou fundo. Lembrou-se das mariposas. Por que se sentiu atraído por elas? Não sabia, mas sorria à simples ideia de tornar-se uma. Não pôde conter o riso ao prometer a si mesmo que jogaria aquele pozinho em todos aqueles que disparavam os tais projéteis pelo olhar. Perdido em seus devaneios, nem percebeu quando um desconhecido, usando luvas e máscara, aproximou-se da cama. Perguntou seu nome, idade, e se lembrava-se do que havia acontecido. Quanta audácia! Não veria ele, sujeito misterioso, que estava dolorido e queria descansar? Voou por uma noite inteira, sem intervalos, pelo mundo todo e até para outras galáxias, e o sujeitinho impertinente insistia em questiona-lo. Parou de prestar atenção no que o homem falava e passou a interessar-se pela sua fisionomia. Podia perceber que o homem tinha baixa estatura, somente pelo fato de elevar demais sua voz. Parecia querer compensar sua ausência de tamanho. Complexado! – falou de si a si mesmo. Cabelo cortado à escovinha e o rosto liso como o de um neném. Deveria usar pijamas por baixo das calças no inverno e meias de lã tecidas pela mamãe. Passou a imagina-lo como uma mariposa. Seria pequena mas valente, e morreria logo.
Quando se deu por conta, estava sozinho novamente. Aproveitou para conhecer o ambiente, já que não tivera tempo minutos antes, interrompido pelo misterioso homem napoleo-complexado. Tudo lá era de um branco ofuscante, que fazia a pupila contrair-se. O teto, as paredes, o chão. Os lençóis, a cama e os parafusos. Uma brancura impecável. Esforçou-se para encontrar o não branco, mas sem sucesso. Apenas ele e suas imperfeições, seus olhos medrosos e sua pele rachada. Ouviu vozes, mas não reconheceu nenhuma delas. Sempre tivera uma pífia memória auditiva. Por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar-se de recados transmitidos, letras de músicas e muito menos do som da voz de alguém; nem dos mais amados. Se bem que não se lembrava de ter amado ninguém, nem agora nem nunca, nem como homem e muito menos como mariposa… Mas isso era curioso: por mais que o sujeito fosse familiar, sua voz parecia algo que lhe era desnecessariamente acrescentado, e por isso de fácil esquecimento. A voz era efêmera, fugaz, apenas um rastro apagado pelo vento. Ou pelo tempo. Ah, o tempo, esse brutamonte que se delicia saboreando as próprias crias. Mastiga-os com deleite e volúpia. A cada mastigada, do coração macio jorra um líquido preto e espesso, um petróleo obtivo através de todas as tristezas e falsas esperanças fossilizadas. A cabeça se desmancha em brancos e murchos miolos, e apesar das diferentes cores e formas o gosto é sempre o mesmo: insuportavelmente salgado; a mistura de mijo e lágrimas. É tudo escatológico. Decomposição. A decadência intrínseca e inerente ao ser; ao não ser mais; ao teria sido; ao que um dia foi. Todos entregam-se ao tempo.
E das vozes imaginadas antes sobraram apenas gritantes súplicas ouvidas ao longe. Com algum esforço conseguia distinguir vozes graves e abafadas, como que vindas do final de um corredor ou do fundo de um poço. Vozes que sussurram nos ouvidos de quem quer ouvir. Precisava parar com aquela paranoia ridícula e começar a proceder. Tinha a necessidade de entender por que estava ali, que lugar era aquele e como sair dali. De repente sentiu saudades do apartamento, da vista que a janela do quarto proporcionava, de frente para o poste a para as mariposas, as adoráveis mariposas.
Sentiu-se pressionado e acuado. O coração passou a bombear cada vez mais rápido, palpitar, galopar ansioso no peito. A pequena caixa branca, diminuta, encolhia-se cada vez mais rápido. Respirou fundo e saltou da cama gritando de dor. Com uma mão na cabeça e as costas encolhidas, caminhou o mais rápido que pôde até a janela. Precisava de ar, precisava senti-lo invadindo e rasgando seus pulmões, precisava dele deflorando-o como na primeira vez que sentiu a vida e o mundo. Apertou os dedos na trava metálica e puxou. O frio do metal foi um prelúdio do que ele veria a seguir: um muro cinza e gélido, de onde emanava uma atmosfera úmida e abafada. Sem pensar duas vezes, rumou na direção da porta. Antes de abri-la, uma espiadela no corredor: ninguém a vista, capitão! Sustentado por errantes e curvos passos, um corpo magro, mais parecido com um cabide vestindo uma camisola, tentava exasperadamente encontrar uma saída. Sentia nas plantas dos pés os azulejos de corredores que pareciam imitar-se, repetir-se uns aos outros. Eram quadrados em sequência, a cada passo um mais claro que o outro. Frenético, cansou-se do jogo estúpido em que estava envolvido e desistiu. Sentou-se escorado numa das milhares de paredes idênticas e respirou fundo, a atenção totalmente focada no entra e sai do ar nos pulmões; precisava entrar em contato com algo humano, sentir que no meio de tudo isso, no meio dele próprio, algum mecanismo biológico ainda resistia ao estupro tecnológico. Ouvia o mar deitando-se na areia, ouvia o canto dos pássaros nos fios de luz, ao lado da janela do apartamento e, o mais inspirador, ouvia e sentia o palpitar do músculo vermelho que carregava no lado esquerdo do ser. Fechou os olhos. Sentiu a boca seca. Engoliu, ou tentou. Descansado e resignado, levantou-se com dificuldade e, exibindo olhos opacos, típicos bovinos e sacrificiais, iniciou a passos lentos uma tentativa de volta, de descoberta, de seja lá o que for. É confusa a auto-biografia.
SENSACIONAL!