Por Glória Albues*
Ó, que santo é esse/que vem lá de fora? É São Benedito e Nossa Senhora.
A Lavagem das Escadarias da Igreja do Rosário e da Capela de São Benedito por centenas de pessoas que pregam a paz e a tolerância entre as diversas religiões cristãs e aquelas de origem africana me deixou emocionada.
Nossa Senhora do Rosário é branca e padroeira de pretos e brancos. São Benedito é um santo negro padroeiro de brancos e pretos. São vizinhos, moram lado a lado no alto da Colina. Entre a igreja e a capela paredes seculares tem portas abertas para se comunicarem entre si.
Meu São Benedito/ vossa casa cheira Cheira cravo/ rosa/ flor de laranjeira.
Viajo nesses odores e me transporto para os anos 80 para contar um sucedido. Foi bem assim. Juro.
Vivíamos àquela época, um fervor ecumênico trazido pelas novas práticas da igreja católica através da Teologia da Libertação que buscava além da união entre as religiões, um papel mais atuante e comprometido com as questões fundamentais dos pobres na América Latina, como a fome, a miséria, a reforma agrária, a falta de acesso à educação, saúde, enfim o direito à uma vida digna. (Qualquer semelhança com a situação atual não é mera coincidência).
Inspirados nesse ecumenismo libertador, pareceu muito natural a três sonhadores, Irmã Dineva Vanuzzi, da Congregação das Irmãzinhas de Jesus, o então jesuíta e pároco da Igreja do Rosário, Luiz Augusto Passos, e a minha pessoa, promover um encontro dos católicos com as religiões afro-brasileira a propósito dos festejos de São Benedito.
Os motivos nos pareciam óbvios. A igreja do Rosário foi construída no século XVIII por negros forros e escravos libertos fundadores da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos de Cuiabá. A capela de São Benedito construída 60 anos depois foi a ela anexada em 1730. Portanto, as mãos e o suor negros estavam impressos por toda a edificação e, apesar de católicos, a maioria praticava seus rituais africanos às ocultas para não serem perseguidos ou presos. Nada mais justo que então em pleno século XX se reencontrassem face a face na comunhão da fé. Sem máscaras.
Imã Dineva e eu partimos imediatamente para a ação. Visitamos todos os terreiros de Cuiabá e Várzea Grande e conversamos com pais e mães de santo (alguns incorporados) convidando-os, e aos seus seguidores, para participarem da missa no adro da Igreja com seus respectivos trajes e adereços.
Alguns atônitos, outros incrédulos, ou mesmo abismados, com a presença de uma freira em seus terreiros, muitos com pé-atrás, demonstrando uma certa suspeição (o que será que esse povo tá aprontando?), o fato é que todos de uma maneira geral nos receberam muito bem e comovidos muitos choraram diante do nosso propósito. Não foram poucos os relatos de intolerância, perseguição e desrespeito por eles sofridos. Aí, foi a vez da gente chorar. Por eles e por nós.
Ninguém aceitou o convite de pronto. Disseram que iam consultar seus guias porque isso lhes parecia muito temerário, que nem a gente tinha noção do que isso representava e que poderia trazer enormes problemas a nós e a eles. Recomendaram cautela: – Quem avisa amigo é…
O caso é que de todos os convidados só apareceu a família do babalorixá Raimundo que tinha um terreiro de candomblé em Várzea Grande, no bairro Cristo Rei. O pai de santo se achava hospitalizado em Cuiabá e a família embora temerosa decidiu participar da missa e pedir proteção de São Benedito ao enfermo.
Chega o dia tão esperado. Cuiabá madruga entre azuis e pálidos tons de dourado. Faz um frio gostoso daqueles de mês de junho. No adro da Igreja, ao ar livre, os fiéis seguem atentamente a celebração da missa em louvor ao Santo. Cantos de pássaros madrugadores pontuam as orações contritas dos devotos.
É então que acontece o inesperado, o nunca pensado, o absoluto espanto.
Vozes d’Africa cantando em yorubá se erguem ao poderoso toque de tambores em meio à liturgia cristã. É um som uterino que vem do ventre da terra e se dá a luz do sol que se ergue sobre a cidade. O dia clareou de vez.
A mulher e a filha de Raimundo finamente trajadas com seus turbantes e alvíssimas roupas brancas de renda da Costa, dois jovens rapazes também de branco com seus colares de miçangas coloridas entoam cantos ancestrais de culto aos orixás do candomblé com reverência e declarado respeito ao Santo. Viva São Benedito! Viva Nossa Senhora do Rosário! Axé! Saravá!
Corria o ano de 1984? De 1985? Ou seria de 1986? O tempo parou de repente naquele “reduto d’Africa”, nome dado ao local por um cronista do Brasil Colônia dada a grande população negra que por ali habitava. Os presentes não se mexiam e se instaurou um enorme silêncio que de tão profundo podia ser ouvido à distância. Todos se sentiam tocados. Epifania!
Mas nem todos foram tocados pelo divino como descobrimos logo em seguida. Terminada a missa, os festeiros (a maioria brancos mas com a presença também de negros) foram até a sacristia cobrar, enfurecidos, ao Pe. Passos, a audácia do ocorrido. Todo tipo de impropério foi dito e o nosso pároco sem levantar a voz um só momento convocava a todos para uma reflexão sobre a força do amor e da união em meio a diversidade de credos e raças. Irmã Dineva não se furtou à discussão e de forma acalorada dizia tudo o que pensava sobre o assunto. Essa mulher invulgar, feminista e corajosa curtida nas lutas em defesa dos camponeses sem terra, dos meninos de rua em Cuiabá, da educação popular e de tantos outros movimentos sociais em favor dos pobres e oprimidos, não tinha papas na língua. Ameaçada de morte inúmeras vezes não se acovardara por nada e ainda mandava recados petulantes aos órgãos de segurança do Estado ou aos poderosos de plantão: – Cuidado comigo. Eu sou freira, não sou santa.
Encerrada a discussão na Sacristia voltei ao Adro onde as pessoas já haviam se dispersado e foi aí que vi uma das cenas mais lindas da minha vida: Mãe e filha com seus belos trajes africanos caminham em passos lentos e adentram a igreja vazia com dignidade de rainhas. Atravessam a nave, ajoelham-se diante da imagem de São Benedito e oram durante longo tempo. Em volta silêncio e paz. Em volta respeito e afeto. Em volta anjos e santos barrocos sussurram: Amém. Ao que os arcanjos respondem: Amem. Assim mesmo sem acento.
P.S. Irmã Dineva faleceu em 2011. Mas quem disse que ela não estava presente lavando as escadarias?
*Glória Albues é cineasta, pesquisadora, roteirista, escritora, gestora pública, animadora cultural e muito mais...
Fantástico esse texto, Glorinha, descrição riquíssima e poética do sincretismo religioso, tão honesto, tão possível de comungar! Parabéns.
Li atentamente em voz alta por estar na companhia da minha mãe com seus 86 anos, estávamos falando de leitura e de pessoas, estávamos comentando um sobre um livro
“Brasileiras “
Guerreiras da paz
Projeto 1000 mulheres
Coodenadora por Clara Charf
Esse livro estava na sede da fazenda do meu pai falecido em Julho passado, difícil voltar a casa abandonada e encontrar pedaços dele e da minha mãe num ambiente que nos traz muitas lembranças, maravilhosa lembranças, minha não voltou mais a fazenda e nem quer, apesar de viva nos nossos corações, esquecidas no tempo da casa abandonada, onde encontrei esse livro com uma dedicatória a minha mãe feita pelo meu cunhado Zé Oliveira também falecido há 10 anos.
D. Zanete
… Sua história poderia muito bem estar impressa nesse livro das brasileiras guerreiras da paz! Mas como não a descobriram aqui no cerrado Mato-grossense, pedimos todos, autorização para que imprimamos essa sua história em nossos corações e mentes.
Afinal o jeito “Mota” de atender, servir e amar as pessoas, foi durante a minha vida, o maior ensinamento aprendido.
Zé Oliveira
Genro é fã
Cuiabá – Março de 2008
Faço das palavras dele uma homenagem a Glória Albues, a nossa Glorinha, querida amiga de muitos anos e lutas, que também deveria estar nesse livro, nesse projeto.
Bela evocação da história desta Cuiabá, que também me emociona. Memórias fundamentais, nestes tempos.
Glorinha que fala maravilhosa! Você me colocou lá, no momento do acontecido! Fantástica sua colocação! Um texto rico e verdadeiro! Já tive oportunidade de sentir tudo que vc passou no seu texto, quando cantei São Benedito Flor de Laranjeira na missa da madrugada, com os pássaros acompanhando, sob as palmas do povo do candomblé e umbanda, todos paramentados, num branco alvissimo! Emocionante!
Parabéns Glorinha!!!!
Deus Muito Obrigada! Digo, ajudar organizar esse evento não é fácil, são pessoas como você Glorinha que nos fortalece, que nos dar força para continuar, ao ver as imagens penso que não podemos parar, existe uma sentimento maior, o amor nos fortalece e nos faz resistente a cada dia. Essa quartinha que carrego refere-se a nossa ancestralidade, que esta em cada um , todos representamos os nossos ancestrais . Muito Obrigada Glorinha ( Lindisey Sá)
Grande Gloria, apesar de a intimidade e os longos anos de convivência contigo me deixarem mais a vontade em… Glorinha: Grande Glorinha. Show de bola nestes tempos de intolerância é presenciar e registrar um momento para além dessa “brigaiada” sem sentido. E Viva São Benedito!!! Beijo do Loro
Saravá Glorinha! Saravá pela cutucada na memória.Eu bem me lembro desse episódio e da reação dos devotos.E sei que a falsa moralidade cristã segue como uma permanência histórica,visível nos comentários intolerantes sobre a lavagem da escadaria da Igreja.Suas palavras tocam tão fortes quanto os tambores dos terreiros.
No relato fiquei imaginando os sons dos pássaros, dos tambores, do canto yorubá, dos anjos dizendo amém. Me perdi no tempo e me transportei para os anos 80. É muito bom saber que a peleja vem de décadas para desfazermos dessa intriga histórica racista centenária e construirmos essa nação miscegenada de raças, cores e sabores.
Minha irmã.Obrigado texto maravilhoso,operoso não só lavou as escadas mais também mentes ainda obscuras.Filha da OXUM ,CORAJOSA E EMPODERADA DE AMOR.EIS AQUI A RESISTENCIA CONTADA POR VOCÊ EM PLENA CUIABA 300ANOS.EIS AQUI A VISIBILIDADE QUE SEMPRE NOS FOI LEGADA,A AGUA VEM COM A FORÇA DA NATUREZA E VAMOS CAMINHANDO LEVANDO E PEDINDO PAZ.OBRIGADO SAUDE E PAZ.AXE,SALVE A AGUA.GLORINHA ABRAÇOS FRATERNO. ALAIR FERNANDO.
Paulo Henrique da Silva .Boa tarde ajudando na construcao desta noticia o tateto Raimundo de Oxossy ‘Mutale’ trazia o dialeto Banto e nao Yoruba pois descendia este mesmo sacerdote da tradicao Angola.
Gloria Albues. Obrigada Paulo Henrique pela correção. Vc acrescenta com seu conhecimento uma informação que diz respeito à verdade histórica. Que bom! Eu gostaria muito que vc também informasse o nome de todos da família do Raimundo. Não o fiz porque a memória não me ajudou neste intento. Obrigada.
Paulo Henrique da Silva
Paulo Henrique da Silva Bom dia cara amiga Gloria Albues entusiasmado com teu maravilhoso trabalho e sou vizinho da familia e amigo sacerdotal ja lhe repassarei obrigado e axe
Paulo Henrique da Silva .Boa tarde ajudando na construcao desta noticia o tateto Raimundo de Oxossy ‘Mutale’ trazia o dialeto Banto e nao Yoruba pois descendia este mesmo sacerdote da tradicao Angola.
Gloria Albues. Obrigada Paulo Henrique pela correção. Vc acrescenta com seu conhecimento uma informação que diz respeito à verdade histórica. Que bom! Eu gostaria muito que vc também informasse o nome de todos da família do Raimundo que participaram da cerimônia. Não o fiz porque a memória não me ajudou neste intento. Obrigada.
Paulo Henrique da Silva
Paulo Henrique da Silva Bom dia cara amiga Gloria Albues entusiasmado com teu maravilhoso trabalho e sou vizinho da familia e amigo sacerdotal ja lhe repassarei obrigado e axe
Sra Glorinha, obrigada pelo texto com essa profunda mensagem,o povo de matiz africana só louvaram agradecendo a sua pessoa.A senhora não sabe o qto fez brilhar os olhos do meu pai de alegria, sem espanto, prq ele a considera irmã e sabe da sua sensibilidade e capacidade de distribuir amor.Sou filha do Alair Fernando e não a esqueço da alegria e seu sorriso naquele grande espetáculo na Cachoerinha na saudação à mamãe oxum e a Iara.A água estava presente como agora na lavagem do Rosário.Trazendo amor e pedindo paz.Este seu texto recupera o visível que nos pertence e nos faz acreditar q devemos continuar pedindo a paz com amor saudando os nossos ancestrais. AXÉ, SALVE AS ÁGUAS! Q OXALÁ lhe abençoe.Ana Fernanda das Neves. Campo Grande MS.
Maravilhoso seu texto, Glorinha, e tambem as fotos do Rai. Gostaria de ter participado desse momento tao significativo. Beijos
Que texto tocante! Madrinha Glorinha, quero parabenizá-la por esse trabalho maravilhoso que a senhora faz, e dizer que é impossível não admirar-te, pois em todos seus textos, documentários, reportagens, e muitos outros trabalhos já desenvolvidos podemos perceber o maior dos sentimentos expressos em cada um deles, o AMOR pelo que faz é esse, o diferencial de um ser humano, o que a faz tão especial e verdadeira. Beijos!
Que belo texto!!! Histórico, reflexivo, poético… assim se propaga a paz!!!
Seu texto, Glorinha, é maravilhoso! Impossível não se emocionar! A sua narrativa se desenrola como um filme em nossa imaginação, nos colocando na cena! O registro desse momento é um grande presente para todos nós, além de nos fazer recordar que esta luta aguerrida vem de há muito tempo… e ela continua. Os equívocos e preconceitos continuam a fazer suas vítimas. Parabéns por toda uma vida de produção e animação cultural.