Uma questão que se coloca atualmente nas cidades é sobre a ocupação artística dos espaços públicos. Até onde pode e deve o poder público intervir sobre a liberdade de expressão e sobre uma produção artística livre e pública que passa a ser patrimônio de todos? Qual o grau de sensibilidade que esperamos dos gestores municipais para lidar com isso? Até onde um prefeito tem o poder de tomar uma medida unilateral sem consultar ninguém numa demonstração de autoritarismo, descaso e insensibilidade que aviltou tanto artistas quanto pessoas representativas da sociedade? Estou falando do prefeito João Dória que decidiu apagar/cobrir as mais belas artes grafites da 23 de Maio no maior mural aberto da América Latina, uma das maiores do mundo com arte de gente do quilate de Eduardo Kobra e outras feras da arte de rua. Um autêntico cartão de visitas para quem passou por São Paulo – tudo coberto com uma só cor, cinza, justamente o cinza que parece cobrir os restos de uma civilização, sim, como restos, como se adiantássemos o tempo, jogando cinzas em um mundo colorido, sensível e de olhar estético apurado.
Mas o duro concreto parece que bateu nos olhos e na cabeça do senhor prefeito João Dória em São Paulo que demonstrou uma falta de sensibilidade e ignorância absurda ao sugerir desconhecer ou não valorizar os conceitos planetários do que seja legítimo como linguagem dentro da arte contemporânea.
Cara, não existe mais espaço para isso, hoje a informação circula rapidamente e as pessoas criam seus espaços de discussões! Se valer o argumento de que o sistema político permite essas atitudes arbitrárias, então o sistema está errado, tem que mudar. Não é preciso um esforço lógico muito grande para ver que muitas leis já não servem para os desafios contemporâneos. Se tudo muda com velocidade crescente é preciso que as legislações se adaptem no correr dos fenômenos.
Várias reações pipocaram Brasil e mundo afora a partir dessa ação de assepsia, de um programa ridículo chamado de Cidade Linda. Segundo especialistas em arte urbana o prefeito não tinha o direito de apagar as obras de arte que passaram a ser patrimônio público. Colhi algumas opiniões e reproduzo aqui: O arquiteto e urbanista Kazuo Nakano, acredita que houve um equívoco. “A retirada dos grafites demonstra um entendimento equivocado porque é diferente da pichação. O grafite conquistou desde a década de 1980 em São Paulo uma legitimidade, com exposições na Bienal, no Museu da Imagem e do Som e no Masp”, argumentou. “São Paulo é reconhecida por especialistas por ter um dos maiores acervos de arte urbana do mundo, é parte do espaço público e isso não pode ser apagado de uma maneira autoritária e impositiva”, continuou o especialista.
Discute-se aqui também a questão do pertencimento. De quem é a cidade senão uma construção coletiva? Ao invés de excluir essas pessoas era importante abrir um canal permanente para discussão sobre o que conservar e o que precisa mudar, afinal a arte urbana está sujeita a transformações que vão desde a intervenção de outros artistas até as condições do tempo que vai interferindo na paisagem e nos materiais. A alegação de que o programa Cidade Limpa prevê uma fiscalização sobre a ação dos pichadores é uma discrepância em relação a esses fatores de mudança que são de natureza ambiental e cultural. Faz parte. Pertence ao processo de construção coletiva de uma cidade. Essa arrogância autoritária, das políticas de assepsia das cidades, coloca o programa do PSDB numa posição estranhamente autoritária e intransigente em relação ao direito constitucional de ir e vir, desrespeitando princípios elementares das liberdades individuais e de grupos.
A grafiteira Barbara Goy, uma das artistas responsáveis pelos grafites na Avenida 23 de Maio, diz que não existe delimitação do grafite. “Limitar onde pode fazer e onde não pode não existe. Não é assim que funciona o grafite. Será perda de tempo e dinheiro”, disse. Ela ressaltou que, até agora, não conhece nenhum grafiteiro que tenha sido procurado pela Prefeitura para o projeto. “Torço para que ele (prefeito) esteja realmente disposto a fazer estes projetos pela cidade, mas sem limitar. O grafite sempre foi a liberdade de expressão dos artistas de rua.”
É preciso recordar que a 23 de Maio, por exemplo, foi encomendada pela gestão passada e esta ação do prefeito Dória desrespeitou completamente a conexão com artistas e da própria ação política cultural de São Paulo numa evidente mudança de postura, agora com tendência elitista e desconectada dos movimentos vivos que pipocam por todos os bairros da cidade e diversas comunidades coletivas que vêm se agrupando e gerando espaços de produção criativa e de vivências artísticas que tanto contribuem para a vida de seus cidadãos.
O grafiteiro e curador responsável pela Bienal do Grafite, Binho Ribeiro, disse que dificilmente o programa será bem-sucedido e que Doria deveria, antes de anunciar qualquer projeto, pedir desculpa à população por ter apagado grafites na cidade. “Qualquer conquista para a categoria é importante, mas não diminui o que foi feito. Uma parte dos artistas não vai querer participar desse projeto, e a outra parte será marginalizada dentro da categoria, se aceitar”, afirmou.
Não existe um consenso sobre a questão, existem grafiteiros que defendem a renovação dos murais para ir gerando novas artes, oxigenando o processo criativo e dando oportunidades para outros exporem seus trabalhos. Já ouvi pessoas dizerem que preferem a cor cinza. Normal, acho que cada um escolhe suas preferências. Mas a construção coletiva da cidade de uma forma orgânica implica em dialogar com as pessoas. Não tomar medidas da sua própria cabeça e passar por cima dos outros.
A professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Nadia Somekh, diz que o problema não tem solução fácil e o programa anunciado por Doria não resolverá o problema do grafite. “O grafite é algo que não é autorizado. Quando o prefeito fala que vai fazer um grafitódromo, não é mais grafite. É arte urbana. É muito bom, acho ótima esta produção de cultura e parabenizo a iniciativa, mas não é grafite.”
Ela também diz que o Cidade Linda deveria focar na limpeza da sujeira na cidade. “Arte não é sujeira. Deveriam limpar o lixo de verdade.”
Em Cuiabá, uma galera capitaneada por Chabox, o Fabrício Chabô, que já é um velho conhecido da cena cuiabana, de muitas realizações independentes na arte e na animação cultural, compôs uma música e produziu um clipe independente como uma espécie de manifesto contra esse comportamento intransigente do prefeito de São Paulo.
Uma produção honesta e feita na brodagem, de forma colaborativa como uma resposta dizendo que as ruas não vão silenciar. De orçamento quase-zero, os artistas rappers, câmeras, editores, galera da produção e gravação, enfim, uma extensa ficha técnica de colaboradores, atuaram sem receber nada por isso. A música propõe de forma coerente uma troca pacífica de ações, ao invés de combater a arte, vá combater as causas que levam a um crescente número de usuários de crack, inchando e gerando as cracolândias de SP e irradiando para todas as cidades do país.
É preciso lembrar que em Cuiabá, a polícia militar deteve e levou para a Delegacia os artistas André Gorayeb e Simone Ishizuka quando arriscaram criar uma arte grafite em uma trincheira no bairro Santa Rosa. A partir disso abriu-se uma discussão sobre a regulamentação desse tipo de manifestação artística na cidade. Abriu-se até editais para selecionar artistas, como o Dória está propondo em São Paulo. Fiquei matutando sobre os excessos de regulamentações, sobre a necessidade desse tipo de organização e limitação dos impulsos criativos dos artistas e do uso dos espaços públicos.
Parece que estão tornando o mundo mais sem graça e sem cor. Uma vida sem festa e sem alegria.
Cinza como o gesto do prefeito de São Paulo.