Hoje a chuva relaxou Cuiabá, e as ruas eram longos espelhos d’água refletindo as luzes coloridas da noite na selva. Todo reflexo é um refúgio. Janelas semi-divinas espalhadas pelas calçadas revelavam nuvens pesadas no céu cor de chumbo da cidade-caos. Caminhei na tempestade e nadei por entre os barcos. Distraídos aos sábados e em colapso às segundas, ricos empresários dirigiam suas Mercedes como se fossem as lanchas que pilotam no Manso. Lembro de duvidar se são felizes.

Num ponto miúdo caindo aos pedaços, umas vinte pessoas engaiolavam suas pressas roçando umas nas outras a pele suada do dia e molhada da chuva. Guarda-chuvas esbarravam em sacolas e os ônibus às vezes jogavam barro nos pés descalços de quem os esperava tão ansioso. Meus olhos deslizam com a água avenida abaixo e encontram o relógio da catedral, suas paredes apáticas que escondem dentro de si o espírito de outra igreja, demolida num desastre modernista em 68. A estátua da justiça, na República, ainda está cercada de crianças e miseráveis. Alguns de bronze, outros de carne e osso.

Foto: Emanoele Daiane Cruz
Foto: Emanoele Daiane Cruz

Segundos antes da lotação despontar no horizonte pontiagudo, a temperatura aumenta naquela ilha de calor. Abafado e anestesiado, assisto à movimentação que precede o próprio acontecimento. Embarco depois de todos. À esquerda, no início do corredor, encontro um assento virado para o fundo. Me acomodo e percebo aos poucos a mudança de perspectiva. Ande de ônibus virado para trás e descubra uma cidade inteira escondida debaixo dos seus olhos. Redesenhe os traços humanos, os aflitos e os cansados e os que tem sangue nos olhos amarelos. Pouse o olhar naquilo que te chama e sustente o peso do interesse recíproco.

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Foto: Ahmad Jarrah

Como uma rosa deslizando pela sarjeta, algo prendeu meu olhar. Sapatilhas em pés delicados brotavam do chão molhado, suas pernas encontravam um vestido florido que cintilava sobre as cores mortas do fim de um dia modorrento, e uma trança pendia do lado direito do rosto. Pensei numa flor conduzida pela água ao bueiro. Quando chove aqui, tudo emana uma aura mágica e embriagante como pinga. Braços, pernas, sacolas e mochilas cobriam metade de seu corpo e transformavam a cena num Picasso em tempo real. De súbito, seu olho direito me acertou com um cruzado e encarou-me impassível por alguns segundos. Daquele momento até meu ponto de descida, as gotas que desciam pela janela pareciam tê-la enfeitiçado. Não moveu um músculo quando passei ao seu lado rumo à saída do ônibus.

Quando desembarquei, nenhuma poça restava. O sol apareceu, os vendedores voltaram às calçadas e os pombos cagavam solenes nas cabeças dos pobres diabos. A tarde era das mulheres velhas e dos desocupados; assoviando, catando pedrinhas opacas, dormindo nos bancos das praças, lá estavam os que não devem nada a ninguém, e se devem estão é cagando pra isso.

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