Por Luiz Renato de Souza Pinto*
No momento em que praticamente encerramos o ano de 2017 me pego a pensar em como nos envolvemos com a construção de mitologias próprias e somos subservientes às escolhas colonizadas de nossos antepassados. Somos um país católico, em grande parte, e isso se deve à colonização portuguesa, obviamente. Caso as invasões holandesas tivessem vingado, poderíamos ser talvez calvinistas (?).
O Brasil são vários brazis. No próprio catolicismo ortodoxo observamos a incidência de lideranças de vários matizes e dentre elas destacamos a de padre Cícero, frei Damião, padre Ibiapina, para ficarmos apenas com alguns expoentes nordestinos do clero nacional.
Em prefácio de Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, já se percebe o olhar percuciente de quem vasculha entre indícios e sinais uma construção sígnica para além dos fatos corriqueiros e suas implicações discursivas a serviço da construção de um projeto de poder. O olhar do prefaciador sobre o objeto da pesquisa está contido no fragmento abaixo que ilustra como portal o projeto encetado pela Companhia das Letras e peça obrigatória para quem se interessa pelas relações diplomáticas da igreja católica com o mandonismo da enxada e voto, cabrestos da política tupiniquim, senão vejamos:
Não ter acesso aos baús da diocese do Crato, nem aos arquivos salesianos, nem muito menos aos da arquidiocese do Ceará, decidiu como alternativa para a tese, estudar e escrever sobre a oligarquia Acioly. (…) a indicação ode Benjamin Liberato Barroso foi um acerto de quartéis e ainda mais num momento de crise com a seca de 1915, a derrocada da exportação da borracha, o desmantelamento do mercado europeu de produtos primários cearenses com a Primeira Guerra Mundial (p. 23-4).
A visão dualista da sociedade brasileira ainda hoje persiste amplamente. Este livro, entretanto, sugere que essa visão tem sido muito exagerada. Não resta dúvida de que, em Joaseiro, mesmo até o fim do século XIX, a sociedade sertaneja estava integrada, em muitos níveis importantes, numa ordem social nacional e única. O caso de Joaseiro revela, ainda, que o conflito entre um movimento sertanejo e a civilização refinada das cidades se estendeu, conforme está implícito em Euclides da Cunha, não devido à incapacidade e à resistência do primeiro em aceitar as conquistas materiais e outras obtidas pelo litoral, mas precisamente porque o sertão procurava tirar uma fatia maior daquelas vantagens (p. 51).
Da região do Cariri também emerge o poder da família de José de Alencar. Origina-se o culto à obra de Rachel de Queirós. O pai de Alencar era padre e mesmo assim (como era de costume) constituiu vasta prole na sociedade local. A cidade do Crato, de onde surge o povoado de Joaseiro, que vai dar luz à emergente cidade de Juazeiro do Norte, é berço de muitos conflitos, dentre os quais se destacam conflitos bélicos para os quais contribuíram muito a indústria do cangaço de onde derivaram outros mitos.
George Gardner, viajante inglês que visitou o Crato, em 1838, ficou chocado com o número de padres que tinham amantes e filhos ilegítimos, os quais eram exibidos, sem pudor, em público. Até as igrejas, os santuários e os cemitérios careciam de reparos materiais; e o costume imperial de realizar eleições no recinto das igrejas acarretava, muitas vezes, profanação e destruição daqueles locais, na medida em que os inimigos políticos armados se digladiavam dentro dos santuários em dias de eleições (p. 61).
A história, sendo cíclica, nos apresenta momentos similares com alguns já vividos em outros tempos e era mais remotas. Percebo a existência de uma espécie de reforma e contrarreforma em curso, desde os anos de 1970 e que se propaga sobretudo na periferia dos grandes centros, espaçando-se pelas regiões metropolitanas. Chamo de reforma o avanço do Neopentacostalismo, sobretudo atraindo o público jovem para ampliar o rebanho do Senhor e de contrarreforma o resgate da Carismática com padres cantores, que transformam as missas em espetáculos, surfistas etc e tal.
Entre mitos e lendas o século XXI vai contornando obstáculos modernizantes e traçando um horizonte retrógrado em que conquistas dos últimos decênios vão sendo colocadas em risco, à medida que avança o comportamento conservador em todo o planeta.
REFERÊNCIA
DELLA CAVA, Ralph. Milagre em Joaseiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
*Luiz Renato é professor, poeta, escritor e ator performático.