Por Caio Mattoso
Recebi uma chamada, resolvi não atender. A vida toda é um canto de pássaro.
Tem dias que não quero trabalhar. Quero só voar. Leve-me. Receba uma chamada por mim, deusa do ócio e do amor e do sexo. Preciso de alguém que dirija; preciso de alguém que voe comigo, vai. Tire-me daqui por alguns instantes, pelo amor de me dar uma folga, a realidade às vezes é tão doída que nem sempre está em você.
Recebi uma chamada.
Boa tarde, cumprimentei.
– Boa tarde, o calor está brabo, respondeu o senhor.
Pra não deixar no vazio, respondi: a temperatura do carro está agradável?
– Está sim, obrigado.
Um senhor tranquilão, baixinho, de idade e que me contou que saiu do médico porque teve câncer na boca, perdeu os dentes e as glândulas salivares. E ainda sim saboreia a vida:
Porrada.
Recebi uma chamada. No lugar que a prefeitura não chega. Sem asfalto, possivelmente sem saneamento, matagal, água de esgoto num possível antigo corguinho. Parei o carro para aguardar o passageiro.
De longe avistei dois homens saindo de um abismo, de uma casa pobre, paupérrima que eu nem sabia realmente se era uma casa. De uma rua suja, sem ninguém passeando feliz pela calçada que não existia. Jovens, negros moradores de um bairro esquecido. Aguardei no carro. O que você acha que eu pensei, sendo branco, classe média e heterossexual, rs? Você acha que eu cancelei a corrida por medo de ser assaltado ou coisa do tipo?
Se pensou que sim, você se enganou. Aguardei, apenas.
Boboa tarde, cumprimentei.
– Eles riram da minha gagejada: bom apremidi, respondeu um dos rapazes. E continuou: nou pral nan sant shopping Goiabeiras.
Na meia-dúvida perguntei: vocês são haitianos, né?!
Sim, o outro respondeu.
Caio Mattoso é poeta, compositor, músico, filósofo, ator e motorista de Uber nas horas vagas.
Maravilha de crônica