Edelson Santana

“A televisão me deixou burro, muito burro demais”, cantavam os Titãs, e cantavam isso na televisão, mais precisamente no programa do Chacrinha. Eu era bem novo, mas já me reconhecia como gente quando vi e ouvi pela primeira vez. Meados dos anos 80, século passado, tevê em preto e branco, e a imaginação de criança, sem tanto esforço como agora, dava cores divertidas ao cenário e ao traje do Velho Guerreiro. O fato é que, contraditoriamente, hoje penso que a tevê colaborou muito para me tirar do lugar-comum e apresentou a mim e à minha geração analógica outros universos possíveis, feitos de livros e rock’n’roll.

A descoberta de Monteiro Lobato já seria mais que suficiente para dar um outro contorno à vida, mas ninguém sairia ileso daqueles musicais infantis que tinham Raul Seixas mandando ver contra o próprio mainstream – “Tem que ser selado, registrado, carimbado, avaliado, rotulado, se quiser voar…” (Plunct Plact Zuuum, 1983) – ou a crítica antibélica, ainda tão atual, de Renato Russo em “A Canção do Senhor da Guerra”: “Pra que exportar comida, se as armas dão mais lucros na exportação? ” (A Era dos Halleys, 1985).

Numa abertura política lenta, gradual e nem tão irrestrita, os informes de censura livre começavam a despontar no início de cada produto televisivo e podíamos então até achar graça do clipe com um Freddie Mercury travestido, pois só mais tarde seríamos capazes de compreender o inglês daquela urgente letra de “I want break free” e vê-la como prenúncio de uma liberdade que estava por vir. O Queen ajudaria a colocar o Brasil na rota dos grandes shows, na primeira edição do Rock in Rio, e ainda seria um dos protagonistas do Live Aid, concerto que conectou o mundo e nos fez comemorar neste julho o dia do rock.

Live Aid, mega evento que originou o Dia Mundial do Rock

Anos 80, a charrete que perdeu o condutor, como Raul já dizia. A década perdida, como os especialistas preferiam. Nossa democracia engatinhava, quase natimorta porém. Presidente civil eleito, morto e um vice assume o posto. E o novo tempo, colocado à prova, se esmorecia com o lançamento de mais um filme do Godard. “A gente não sabemos escolher presidente” abria o lado B, na faixa “Inútil” de Nós vamos invadir sua praia (1985), elepê de estreia do paulistano Ultraje a Rigor. As autoridades advindas de uma “novidade inconsistente” seriam também questionadas lá da jovem Brasília, em Selvagem? (1986), dos Paralamas do Sucesso. E a guitarra do rock nacional passava a ser, definitivamente, um instrumento de protesto.

Televisão, literatura, rock, a minha vida, sempre tão entrelaçados… Talvez por isso não me estranhava ouvir, ainda em fase inicial de formação, uma banda brasiliense com um vocalista cujo nome homenageava Russel e Rosseau e letras elaboradas que evocavam filósofos suicidas (Legião Urbana, 1985). Enquanto nas escolas se aprendia educação moral e cívica, as bandas de rock universitárias nos faziam resvalar no sólido pensamento filosófico com citações diluídas entre as canções.

Legião Urbana, ícone da poética urbana dos anos 80

O álbum A revolta dos dândis (1987), dos Engenheiros do Hawaii, trazia para mentes que quase não enxergavam referência direta ao existencialismo de Jean-Paul Sartre: “Acontece que eu não tenho escolha/Por isso mesmo é que não sou livre/Não sou eu o mentiroso/Foi Sartre quem escreveu o livro”. E também à questão do absurdo, pinçada de um romance de Albert Camus: “Eu me sinto um estrangeiro/Passageiro de algum trem/Que não passa por aqui/Que não passa de ilusão”.

Tempos depois, O ser e o nada daria ainda título e conceito a um álbum da Hanói-Hanói, a banda do compositor Arnaldo Brandão. A essa altura, a estrutura latente de nossa pré-adolescência já havia sido abalada pela desconfiança de que além do prazer poderia estar também a dor. À natural insegurança das primeiras descobertas, somava-se o medo daquilo que não podíamos ver nem sequer controlar… Cazuza personificava esse nosso temor nas apresentações públicas de O tempo não para ou no registro terminal de Burguesia, ambos do ano anterior à sua morte, causada pelo vírus. E assim os nossos desejos, quando do nada surgiam, vinham sempre embaçados pelo risco.

Cazuza, uma voz contundente, prenúncios de um futuro distópico

Os anos 90 chegaram e a tevê trazia para dentro de casa as cores vivas dos bombardeios no golfo pérsico. Por aqui, a população continuava à espera de quem a salvasse do dragão, numa batalha sem fim contra a inflação. Na perigosa ânsia de uma novíssima República, nosso sebastianismo atávico e desde sempre recorrente fez eleger um presidente-galã na primeira eleição direta em décadas.

O Novo Brasil, mais um entre tantos planos econômicos anteriores, logo se mostraria com a cara de um Estado que toma o dinheiro dos cidadãos comuns que depositavam seus sonhos em cadernetas de poupança. “E há quem se alimente do que é roubo/Vou guardar o meu tesouro/Caso você esteja mentindo”, registrava “Metal contra as nuvens”, da Legião Urbana, em V (1991), álbum cinza para tempos colloridos.

O anúncio de uma abertura econômica fazia entender que as charretes oitentistas cederiam espaço para os conversíveis de uma onda global modernizante. Na MTV, Jorge Ben agora era Benjor e “W/Brasil”, em sua alegria triste, configurava-se a crônica e também o background pop daqueles novos dias. Mas era do mangue nordestino que começavam a vir as novidades realmente boas, como se um país-zumbi, enfim, despertasse para um movimento de renovação verdadeira.

Sob a atmosfera desse universo em transformação, eu me instalava definitivamente em Cuiabá para cursar jornalismo na UFMT. E meu mundo mudava junto. A vista, naquele momento, alcançava outros horizontes, mais alternativos, e rapidamente se familiarizava com a paisagem acadêmica. No pátio da faculdade, um moço baixo de caneta no bolso que vendia livros perto da rampa às vezes tocava violão e me fazia gastar boa parte de uma hora de almoço corrida no RU para prestar atenção na letra e no som.

O poeta Antônio Sodré em foto de Mário Friedlander

Se hoje, neste mundo adulto, o Pato Fu canta que “toda cura para todo mal está no Hipoglós, no Merthiolate, Sonrisal”, já naquela época o poeta Antonio Sodré me fazia pensar que, quando o peso da existência dá aquele aperto no peito, a gente sempre acaba por recorrer à televisão, a um livro, aos discos de rock ou a qualquer outro tipo de Vick Vaporub pra sarar…

 

Edelson Santana é jornalista, mestre em letras e linguística, e tira sua erudição de almanaques e do verso das folhinhas

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