Demétrio Panarotto
A mira do fuzil era o palco montado na praça Coronel Bertaso, Chapecó-SC, Brasil, sábado, 24 de março de 2018.
É estranho, sempre é, constatar que no Brasil as praças são dos coronéis, ou daqueles que em vida ainda compartilham o apodrecimento da ideia que vociferava no relho (dos coronéis).
Quem discorda (das leis dos coronéis) está sobre a mira do fuzil.
Mesmo que a poesia pareça tão frágil diante das armas, é com a poesia que se deve enfrentá-las.
É com a poesia.
É com a poesia.
É com a poesia.
Dizer que no Brasil a praça é do povo talvez não passe de um gesto de resistência mais ou menos assim cada vez menos.
A praça apenas leva o nome de praça, mas nem ao menos se perder em seus arredores é possível quando se dimensiona o sentido da palavra.
Talvez seja possível dizer que como um cemitério é um território mais morto do que vivo: e morre toda a vez que nela não se pode falar, discursar, gritar poetizar, gaguejar.
No palco, como se antevesse o desfecho da cena, o personagem se movimentava de um lado para o outro, ia e vinha, vinha e ia, e gesticulava, e gesticulava.
Não parar é o segredo para quem está sob a mira do jornalismo que instiga e se esconde atrás da publicidade dos homens de (do e da) capital.
Os homens de capital são os homens acostumados a decapitar os seus opositores.
Não parar é o segredo…
O atirador estava no alto de um dos prédios que rodeavam a praça a mais ou menos trezentos metros de distância do palco.
Se a arma era automática e com mira a laser, ou semi, ou sei lá eu o que, não fazia diferença imagética alguma, era uma arma e estava apontada para o palco que ficava localizado na praça.
O tiro, disparado às vinte e duas horas e dezoito minutos, entrecortou o ruído escandaloso de buzinas de caminhões e de foguetes — parecia até que não queria chamar a atenção.
Os ruídos sempre aproveitam outros ruídos para passarem despercebidos aos ouvidos de quem (diante da barbárie eminente) não ouve e usa como argumento o fato de não ouvir para se manter isento.
O discurso que emanava do palco era pelos vivos, mas era também pelos fantasmas; por aqueles que ali, naquele mesmo lugar, foram sacrificados, queimados vivos;
A praça é o local do sacrifício.
De um lado, o lado escondido e repleto de falas veladas, a arma.
Do outro, neste caso, o microfone.
O lado que se escondia é o que sempre se escondeu: aquele que dá um tapa, esconde a mão e tenta incriminar o outro, o próximo o próximo provavelmente o próximo, aquele que não se encaixa no padrão empurrado orifícios á dentro.
O outro, o exposto, é o que se mostra para além das necessidades: o lugar do excesso, da dobra fora da fotografia, que não é bem visto diante da retórica da disciplina e da clausura midiática.
O lado escondido, a que parece, era acobertado pela barricada da polícia que dava a entender que tem e protege os seus políticos bandidos preferidos, protegidos pelos juízes do baixo meretríssimo.
No palanque o outro, o da exposição, meio saltimbanco, suava, provavelmente com a eminência do impacto do projétil, mas o suor se perdia na chuva que molhava os sonhos que ali se pronunciavam.
Guarda-chuvas, muitos guarda-chuvas (muito mais usados para se proteger dos ovos que sobram na mesa de quem tem muito e que falta, sempre falta, na mesa dos menos favorecidos).
Em uma imagem do alto, a praça tomada pelos guarda-chuvas na contraluz do poste ficava linda.
A bala, há pouco disparada, ainda está a caminho ou talvez tenha errado o alvo que, por sua vez, não para de se movimentar.
Afinal, se não for alvejado hoje, será amanhã, ou depois, disso ninguém tem dúvidas.
A História, que seja como uivo, nunca se calará diante de tais fatos, por extensão não passa de uma falácia. Vem como narrativa do fracasso de um povo, de um povo que parece fadado ao fracasso como povo, gente, nação, país… (fracassos didáticos)
São poucos segundos após o dedo apertar o gatilho.
Talvez um apenas (nunca apertei um gatilho).
Não há vida num disparo.
Mesmo que o alvo seja o nada ou uma fortaleza.
Quem mira um senhor com mais de setenta anos será que está mirando o próprio pai, filho, espírito santo, avô? ou a mãe, maria, filha, avó?
Um país de jovens caducos?
Um país de jovens esclerosados?
Chamar os jovens de velhos não passa de mais uma agressão. Ou um jogo retórico pra se entender o excesso na relação tiro ao alvo.
Um país de jovens alimentados por velhos esclerosados.
Nada estimulante perceber os êxtases do passado retornando na baba que escorre pelos cantos da boca.
Sem querer assustar ninguém, a bala permanece no ar (como assim?), parece mais demorada que os demais fluidos ao se separarem dos corpos.
Não sei se o tiro acertará alguém.
Talvez a histeria ajude a silenciar o seu curso.
O discurso, que também cursa curso pulsa, não.
As balas de borracha não apagam as insensatezes escritas nos cadernos daqueles que com suposta sensatez vibram com a morte do outro.
A tentativa de um homicídio dessa monta é apenas uma repetição como tantas outras que acontecem num país imagem.
Um país em que o único projeto que parece dar resultado é o de matar gente.
Mata-se gente a toda a hora ou simplesmente se deixa morrer com um lavar as mãos impressionante.
E depois vão à igreja rezar.
Repetições.
Uma repetição que terá outros capítulos.
Mais um Lampião que precisa ser apagado.
A Maria Bonita dessa história já a mataram há algum tempo.
As cabeças estão expostas nas imagens da praça que não é do povo, reforço, é dos coronéis.
Outras serão.
Quando se chega no ponto em que a cabeça precisa estar desconectada do corpo para mostrar que o outro não será mais motivo de infortúnio, acho que se chega de novo na História.
Nesse caso, em meio a impropérios, cheguei a uma crônica de Machado de Assis, publicada no dia 14 de fevereiro de 1878 – A Semana; reproduzo um trecho antes de fechar a conversa e depois de escutar o segundo tiro:
“Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem que as vende na calçada da Rua de São José, esquina do Largo da Carioca, quando vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada:
— Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
— Quem?
— Me esqueceu o nome dele.
Leitor obtuso, se não percebeste que “esse homem que briga lá fora” é nada menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos, com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda…”
Mesmo diante da matadeira moderna, Canudos vive.
O local da rendição não é uma ruína em que dela sairá uma mulher uma criança e dois homens velhos, mas dela emergirá uma multidão;
Já não é possível exterminar a todos.
Outro tiro agora.
Demétrio Panarotto nasceu em Chapecó-SC, em 1969. É doutor em Literatura (UFSC) e professor no curso de Cinema da UNISUL. Músico, roteirista, poeta, escritor e idealizador do programa Quinta Maldita (com a Desterro Cultural via canal do youtube) e do PIPA Festival de Literatura (com Juliana Ben). Publicou, recentemente, “Cerzindo e Cozendo” [2020, poemas] e “Privado” [2021, contos], os dois pela Butecanis Editora Cabocla; mais alguns poemas, contos e textos em blogs, sites, revistas e afins. Lançou, ainda, em 2020, em parceria com o irmão Roberto, seis EPs pelo Selo Fonográfico 180 (projeto Irmãos Panarotto). Reside em Florianópolis-SC, Brasil.