Um livro de poesia sempre é um convite ao desvario. Quando não o encontro, pareço experimentar um desconforto. $500 loan with no job. Bruno Gaudêncio não me permite. Ainda que o blues e os minotauros se me apresentem desprovidos desse fio, percebe-se que a criação intensa desse experimentalismo poético constitui o referido labirinto a que Andri Carvão bem coloca em sua orelha. Não gosto muito de ilustrações em livros de poemas, embora já tenha gostado muito em outros tempos. Mas não há como desconsiderar o trabalho minucioso de Felipe Stefani nesta obra.

Em Isabela Sancho, de quem tenho procurado ler tudo o que se publica, também encontro esse complementarismo entre imagem escrita e imagem visual. Há muitas referências ao longo do livro e não me deterei em comentá-las para além do registro genérico de suas existências. Quero me ater à escrita, ao registro do texto e como o recebo em meus olhos. Com estes faróis é que percebo

suas teclas presas pela poeira

o G apagado como ponto exato

do desamparo

(p. 16).

Bruno Gaudêncio

O ponto “G” da poesia de Gaudêncio é dedicado a outro Bruno, o Ribeiro, e o poema de seis estrofes, quatro delas com três versos, uma com dois e outra com quatro. O poema começa e termina com a mensagem de que se escreve sobre como não escrever um poema. Recentemente tive um texto publicado em uma antologia, editada pela ediPUCRS, intitulada “não escrevo porque”, o que me traz imediata identificação.

Compreendo essa ideia de transformação, de processo, inatas à criação artística, de modo geral, e literário, em específico. Nesse sentido considero as ilustrações de Stefani como elo entre a cabeça do leitor e o comando do poeta, não se atendo apenas como meio a máscara do eu-lírico, referendada pela teoria e crítica literária.

Percebo na movimentação das letras de página a página uma autorreferência a Mallarmé, que se materializa ao final do livro. Mas não quero dizer com isso que haja necessidade de que o leitor se aproprie de todo esse conjunto de elementos para compreender alguma mensagem. Considero o conjunto dos gêneros literários como autorreferente.

A formação acadêmica, notadamente no campo da história também atravessa o movimento. Talvez seja outro labirinto e as imagens que o atravessam constituam novas ruínas na composição desse mosaico. Catálogo dos desertos, bumerangues e origamis, lápide, arcanos, epitáfio, queda, uma noite de guerra, a invenção do esquecimento, abismo, antifausto, encruzilhada, teatro em ruínas e setembro amarelo, por exemplo, são títulos de poemas que parecem anunciar elementos dessa relação.

Um livro é sempre um projeto, nunca um apanhado de coisas a se divulgar. E quando é um apanhado, é porque se quer que seja lido dessa forma, portanto, projeto.

A ideia de passagem, de ligação de ponto a ponto, de transformação  e ruína me parece mais forte quando

vejo uma borboleta

que flutua entre as coxas

tendo um arpão nas suas asas

floridas e róseas

(p. 19).

A ideia do arpão me lembra a caça e pesca, a busca pela saciedade, da conquista, da apreensão e comando. O verbo flutuar traz leveza para isso e a conquista e contempla do outro lado da folha. Da “tatuagem”, poema anterior, para “De bumerangues e origamis”, o seguinte. De um bate e volta para uma dobradura. O conceito de dobra na cultura historiográfica daria pano para muita manga, portanto, deixemos para outro momento.

dei por compor borboletas

que penduradas

nas paredes

do meu quarto

acabaram por dar voltas

nos meus

sonhos

(p. 20).

Trago esta última imagem de Gaudêncio para reafirmar o papel da borboleta entre os escombros escamoteados nos poemas. Pareço lembrar-me de Carlos Drummond de Andrade coma sua Itabira, “um retrato na parede, mas como dói”. E Xavier de Maistre, viajando ao redor do próprio quarto. Parece-me que

O fio de Ariadne que guia a criança no labirinto não é somente o da intensidade do amor e do desejo: também é o fio da linguagem, às vezes entrecortado, às vezes rompido, o fio da história que nós narramos uns aos outros, a história que lembramos, também a que esquecemos e a que, tateantes, enunciamos hoje. (GAGNEBIN, 1999, p. 92).

A funcionalidade de qualquer objeto, entre os quais insiro a do livro, pode ser objeto de reflexão por intermédio da obra de Gaudêncio. O macramé pode ser utilizado para a confecção de pulseiras, cortinas, suporte para plantas, colares, panos de prato, chinelos e muitos outros objetos do cotidiano. A literatura não precisa ser adorno para as estantes, ou mesmo paredes. Experimente levar a poesia dos livros para o olhar. Quem sabe algo de novo possa acontecer em sua vida.

 

REFERÊNCIAS

GAGNEBIN, Jean Marie. A criança no limiar do labirinto. IN: História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999.

GAUDÊNCIO, Bruno. Blues e minotauros. Campina Grande, PB: Leve, 2021.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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