Jorge Amado e Zélia Gattai, Afonso Romano e Marina Colasanti são dois casais de escritores de que me recordo agora, e que conseguiram cercar-se de bons amigos, editores e leitores, ao longo de suas vidas. Com várias publicações de qualidade, cada qual traçou seu caminho e povoou nossa imaginação com suas histórias, narrativas. O primeiro casal já está em outra dimensão. O segundo continua produzindo e nos brindando com um trabalho literário de bastante qualidade.

Lívia Garcia e Luis Alfredo

Luis Alfredo e Lívia Garcia-Roza formam outro desses conjuntos. Tenho acompanhado, emocionado, as postagens de Lívia que está sempre à beira do leito em que o cônjuge habita há algum tempo, sem descuidar da companhia, desfrutando das lembranças boas vividas desde sempre, postada lado a lado de seu companheiro por tantos anos. Por ter a amizade virtual de Lívia acabo compartilhando (silenciosamente) de seus “posts”, sem saber se curto, coloco coraçãozinho, ou apenas internalizo sua bondade extrema para com o seu próximo mais próximo, Luis Alfredo.

Luis Alfredo Garcia-Roza. Foto: divulgação.

Acabo de ler o romance “Solo feminino”, encomendado pela editora Record para a coleção Amores Extremos e publicado há dezessete anos. A obra gira em torno dos acertos e desacertos na vida de Gilda, ao contrário da personagem clássica de Rita Hayworth, uma mulher assediada e mal resolvida em inúmeras relações em busca do amor perfeito, ou seria do orgasmo perdido?

Nunca é demais lembrarmos do arquétipo de mulher fatal, para o qual contribuiu muito o papel de Rita, no filme de 1946. Ela, a atriz e dançarina, belíssima, futura esposa do genial Orson Welles, de quem a Wikipédia faz um recorte emblemático (ainda que não seja uma fonte científica e autorizada para falar da vida de ninguém).

A fama de maior estrela da década e de uma das mulheres mais desejadas e famosas do mundo consolidou-se ao estrelar, no auge de sua beleza, o clássico noir Gilda (Gilda, 1946), de Charles Vidor, ao lado de Glenn Ford, com quem já atuara antes em Protegida do Papai (The Lady in Question, 1940), também de Vidor. O marcante, ainda que brevíssimo, strip-tease de Rita (na verdade o strip-tease é sugerido pois ela tira apenas a comprida luva de um dos braços) e a bofetada que ela recebe de Ford, ajudaram a engrossar a enorme bilheteria que o filme recebeu em todo o mundo.

Gilda, o filme mais importante de sua carreira, também marcou o início de seu lento declínio em Hollywood. Assim como, na frase precisa da campanha publicitária, “nunca houve uma mulher como Gilda”, assim também nunca mais Rita conseguiu repetir esse êxito, apesar de ter continuado a trabalhar em produções de sucesso.

Lívia Garcia-Roza. Foto: divulgação.

A personagem de “Solo feminino” envolve-se em situações nas quais é cobrada uma atitude nem sempre recomendada nos dias de hoje, mas para as quais o jogo de cintura é necessário, a fim de sobreviver, sobretudo no ambiente corporativo. Evaristo, seu patrão, não desiste de assediá-la das mais variadas formas. Seus namorados, um atrás do outro, não conseguem estabelecer uma relação de completude com a moça, a mãe, não deixa espaço algum para que se encontre como mulher, as irmãs, mais velhas, também são recortes de incompletude humana, cada qual à sua maneira.

O cenário da trama é a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, adotada por Lívia desde que atravessou a Baía de Guanabara, de onde divisava o que se diz ser a melhor paisagem do Rio de Janeiro, o olhar através da Baía, do lado de lá da ponte. A intervalos regulares da escrita, a violência da cidade é observada pelo Cristo redentor, incapaz de interferir no avanço da criminalidade que se espaça ao longo do romance.

Fui incapaz de fazer muitas anotações sobre a obra durante a leitura. Registrei apenas duas passagens, a fim de utilizar nesta crônica. Uma diz respeito ao primeiro namorado de Gilda, pelo menos o primeiro de que a narrativa dá conta. “José Júlio tinha dito que havia uma doença que dava muita alegria. Uma vez, uma moça tinha sido internada em plena felicidade” (p. 29). Sei que a autora, imersa na rotina de um hospital há algum tempo, não está às voltas de enfermidade parecida. Sequer sabemos se existe tal moléstia, a que traria felicidade para o enfermo, ou mesmo para seus entes queridos.

Outra passagem, já ao final do romance, traz a imagem que finaliza, dá contornos definitivos para a trama da qual Gilda se torna partícipe, antípoda da citação anterior. “… meu tio saiu do quarto, retornando em seguida com uma caixa de papelão e, aproximando-se da cama, sacudiu a caixa sobre mamãe, dela fazendo cair estrelas de papel” (p. 223).

De longe, com o sentimento de impotência que nos é imperativo, torço para que Lívia e Luís Alfredo continuem a nos mostrar a possibilidade de um casal viver por muitos e muitos anos a enfermidade de uma alegria intensa, contra a qual nada se possa fazer, ainda que faça parte de uma ficção belíssima, digna de qualquer prêmio literário aqui e agora.

 

GARCIA-ROZA, Lívia. Solo feminino. Amor e desacerto. Rio de Janeiro: Record, 2002.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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