… em mim, quando o filósofo está presente, o poeta não aparece. E à chegada do filósofo, o poeta se retira. (CÍCERO, 2012, p. 8).
“Um bom samba é uma forma de oração”, dizia o poeta. Um poema também, Leonardo Chioda sabe disso, e bem. Seu livro “Tempestardes” é todo oracular, mas de uma erudição não bíblica, pois que cultiva o paganismo, o livro, digo; creio. A erudição do autor ejacula construções complexas e interditos de outra monta.
PRECE DA TARDE
azul na terra
como no céu
(CHIODA, 2013, p. 77)
Detenho-me no aforismo acima. Digo aforismo para acompanhar a evolução do termo, egresso de um latinismo, extensivo a várias áreas do conhecimento. “Desse alargamento de sentido resultou a sinonímia quase complexa entre os vocábulos ‘aforismo’ e ‘máxima’.” (MOISÉS, 2004, p. 13).
Acrescento ao elemento mórfico do latinismo acima o fato de o poeta ter estudado literatura italiana na Università degli Studi di Perugia, enfeixando assim os elementos caracterizadores de minha leitura, o que fecha com a intertextualidade com o Padre Nosso. A ideia de firmamento para se referir ao céu como elemento cristão, traz o elemento metonímico para a análise. Com as relações de contiguidade sugeridas, refere-se ao céu a imagem do firmamento, local para onde “muitos serão chamados, poucos os escolhidos”.
Leonardo Chioda teve seu projeto escolhido pelo PROAC, da cidade de São Paulo e ganhou edição pela Patuá, de Eduardo Lacerda, editor de poesia contemporânea com largo catálogo no mercado. Se olhando para o mar tem-se a ilusão de ótica de que se junta o azul da água com o azul do céu, o espelhamento mescla tensões entre a vida terrena e a existência divina, reforçando o código trazido pelo poema. Essa abertura divina traz para o plano da crítica observações indulgentes; o poema tem o caráter de prece. E da tarde.
Lembro com certa efusão quando percebi com Bilac e depois Bandeira, meu poeta preferido, a conotação ode tarde para a idade madura; talvez o poema de Chioda orbite essa relação. Trazer para o plano terreno a existência divina seja espécie de promontório poético. Assim como a fusão do azul do céu e a do mar é ilusória, a proposição que o “eu-lírico” traz também o seja. O poema constrói-se sob um tempo firme. Há nebulosidades no campo semântico porque é um bom poema; não carece que se diga tudo. Divagando sobre o quanto poeta e filósofo, a guisa de observação popular, vivem nas nuvens, o “soneto do desmantelo azul”, de Carlos Pena Filho (apud CÍCERO, 2012, p. 10) é partícipe dessa teoria. Nele, o eu-lírico se abre ao leitor:
Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
e enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.
O poema tem a estrutura clássica do soneto. Todo em versos decassílabos, seis dos pares de rimas sendo ricas, somente um se apresenta pobre, com classes gramaticais idênticas, justamente o que se forma a partir dos verbos: lembrarmos/contemplarmos. Talvez Cícero tenha escolhido este poema para comentar sobre aspectos nefelibatas do poema, justamente pelo par de verbos que, ao rimarem produzem um tipo de rima que se classifica quanto à qualidade, como pobre. Mais ao sul, encontramos Carlito Azevedo. Em seu “ABERTURA”, a composição é conduzida ao leitor pela precisão enigmática de seu eu-lírico hermético.
Desta janela
domou-se o infinito a esquadria:
desde além, aonde a púrpura sobre a serra
assoma como fumaça desatando-se da lenha,
até aqui, nesta flor quieta sobre o
parapeito – em cujas bordas se leem
as primeiras deserções
da geometria.
(AZEVEDO, 2010, p. 35).
Após esse laivo inicial o leitor é arremessado para longe, “desde além, aonde a púrpura sobre a serra” e pode observar a coloração do céu, agora não mais azul, ensanguentado por outros tons. Eis que o esfumaçado atinge a púrpura sugerida “desatando-se da lenha” imagem contemplativa de ambiente rural, campônio, equilibrado, apolíneo. Tirando o leitor do estupor a que se prostrou, o eu-lírico repuxa-o bruscamente: “até aqui, nesta flor quieta sobre o”
E irrompe o sentido do verso com o enjambement abrupto que projeta o entendimento para o verso seguinte. “parapeito enquanto as bordas se leem” e o leitor em estado de espanto busca o referente no parapeito em que se encontra debruçado à espera do desfecho que não vem. “as primeiras deserções”
O que tem elas, deve questionar o leitor, “da geometria”.
Após os três primeiros versos iniciados com a letra “d”, ou se preferir, com o fonema /d/, o leitor sai das inversões sintáticas propostas e entra na ordem direta do discurso, em que surge a aliteração, após a cesura presente entre a sétima e oitava sílabas fônicas: “a/sso/ma/co/mo/fu/ma/ça/de/sa/tan/do/se/da/le/nha”. Observa-se que as tônicas estão presentes na segunda, sétima, décima primeira e décima quinta sílaba do verso.
A partir daí o poema começa a se desintegrar, e o uso do encadeamento serve à desconstrução, como a fumaça que vai queimando a lenha e produzindo cinzas ao redor do quadro. A imagem diluída encontra materialidade no signo geométrico que se caracteriza pelas “primeiras deserções da geometria”.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO Carlito. Sublunar. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2010.
CHIODA, Leonardo. Tempestardes. São Paulo: Patuá, 2013.
CÍCERO, Antonio. Poesia e Filosofia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 2004.
Amei.