Por Thereza Helena*

 

Com o enunciado de que são poucos os escolhidos, o bailarino Vinícius dos Santos recebe cada um dos presentes e afirma que podem se considerar privilegiados por estar entre os 28 que naquele dia assistirão seu primeiro trabalho solo.  A obra é separada em duas partes bem distintas. Na primeira, o público é convidado a se sentar num chão forrado de roupas do próprio artista e ouvir os relatos de episódios conflituosos vividos por ele.

Vinícius narra as hostilidades às quais estão sujeitas um corpo que se sabe e sente abjeto por sua orientação sexual, origem e identidade. Ele conta como se sente quando uma pessoa na rua segura a bolsa com mais força ao vê-lo se aproximar, quando os vizinhos do prédio, ao vê-lo no elevador social, perguntam se o de serviço está quebrado, e ainda da necessidade de “falar grosso” solicitada repetidas vezes por entes queridos.

Esse arsenal pessoal de constantes constrangimentos sofridos pelo fato de ser negro e gay sem dúvida compõe uma dramaturgia textual capaz de incomodar qualquer escuta e audiência mais sensível. Porém, a constância vocal com que as frases mais duras são ditas constrói uma espécie de distanciamento entre quem fala e o sujeito que as sofreu.

Propositalmente ou não, esse deslocamento parece transferir o foco da ação vista para o texto falado. Com esse movimento, o desconforto que atinge o meu lugar de escuta enquanto mulher, branca, hétero cis, aumenta por reconhecer uma espécie de familiaridade desencadeada pela frequência com as quais as violações reveladas por Vinícius são mais do que desprivilégios só dele. São incursões abusivas reconhecíveis por grande parte dos sujeitos espremidos nos grupos de minorias.

No segundo momento, a audição cede lugar para que o olfato e o tato protagonizem. Todas as pessoas da plateia recebem capas plásticas e são convidadas a entrar numa outra sala. Visto a minha capa e sigo com o grupo para o ambiente ao lado. Lá, se vê um monte de sal e um balde com fígado e coração de boi. A capa me protege do sangue que respinga daqueles pedaços de animal, mas o olfato não passa imune pelo cheiro de morte que toma conta da sala. Como num exercício de reiteração, com o corpo Vinícius dá a ver seu discurso de dor compartilhado no início do trabalho: ele salga sua pele negra e lacera a sua carne que em pleno 2018, ainda é a mais barata do mercado.

No que diz despeito à criação artística contemporânea, que em amplo aspecto é produzida à revelia da representação, ao usar seu próprio nome, Vinícius, ao mesmo tempo em que  destitui o protagonismo de uma personagem e conflitos fictícios, se lança na investigação de plasticidades e estéticas capazes de materializar o impulso criativo sem sair do  foco dos estudos de si.

Nesse ponto, a teatralidade de um chão coberto por roupas do artista, acompanhada da performatividade da viscosidade do sangue da carne do animal morto que exala das vísceras e atinge em cheio o meu nariz, momentaneamente desestabiliza a realidade de que participo, me fazendo tecer correlações entre um artista negro salgando a própria carne e os privilégios anunciados por ele próprio no início da obra: então eu seria privilegiada por presenciar uma reconstrução da re-flagelação histórica do corpo negro? Ou tratar das desigualdades de gênero e etnia pela perspectiva da arte seria um “privilégio” de ambos? Um ponto de aproximação entre nós dois para que se possa praticar reparações históricas?

Texto escrito para o Parágrafo Cerrado a partir da programação “Abril em Dança” organizada no Espaço Mosaico – convivência artística, realizado de 13 a 28 de abril de 2018. 

 

*Thereza Helena é atriz-criadora, mestranda em estudos de cultura contemporânea e 
provocadora do Parágrafo Cerrado. 

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