O Brasil é governado por quatro poderes: executivo, legislativo, judiciário e aquisitivo. Eugênio Mohallem
Há poucas enfermidades tão grandes quanto a transferência psíquica de algum trauma para o campo da política, e uma delas é extravasar no futebol. Essa conversa sobre a pátria de chuteiras e outras preciosidades jocosas que maltratam a relação complexa entre o erudito e o popular contaminam algumas verdades necessárias e urgentes. Não quero dizer com isso que o futebol seja um câncer social, pois não troco minhas picuinhas com palmeirenses e flamenguistas por uma discussão séria sobre Pablo Vittar, Anita e Ludmila, por exemplo. Nocauteou? Pois então prepara: é hoje que vou te pegar gostoso!
Daqui a poucos dias entraremos em campo para mais uma competição internacional nos gramados. E ainda estamos com aqueles sete na conta corrente. Para quem já teve João Saldanha, Nelson Rodrigues, dentre inúmeros filósofos do mundo da bola, termos hoje que nos contentar com a mediocridade do momento como narradores e comentaristas, salvo determinadas exceções, obviamente. Na política e na arte, tal envergadura encontra também seus óbices (para exercer um pouco da erudição).
Mário Rodrigues (não é parente do Nelson), em seu romance A Cobrança, coloca-se diante da marca de cal com aqueles sete, outros sete, aliás; sete metros e quatorze centímetros de um retângulo gigantesco diante do qual sua vida pode mudar. Enquanto caminha do meio de campo para a cobrança da penalidade, ainda não foi julgado. Mas quando encostar o pé (direito ou esquerdo) na pelota tem que estar preparado para o juízo. Tudo o que fez até o momento da cobrança pode ir pelo ralo; a torcida se lembrará apenas daquele instante. Virão outras cobranças? Não é apenas a escolha do pé, mas como bater no artefato, seja a bola, seja a urna, seja a obra. Fazer valer a escolha, o título – de campeão, de eleitor, de escritor.
O atleta vai caminhando. A trave vai ficando cada vez mais imponente e a figura do goleiro em seus trajes de mangas compridas abre os braços para abraçar e entreter os sonhos do menino; há impedimentos demais nesse jogo. Como um partido faz três presidentes sem um único voto? O primeiro, da república das Minas Gerais, mas lembrado por uma mina específica, a modelo desnudada pela imprensa nacional; o segundo, com seus insetos de fogo que o levaram até a Academia Brasileira de Letras, aquele receptáculo de inventivos admirados de uma arte que expressa a indiferença nacional perante tudo, ou quase tudo; o terceiro que, pretensamente, se acha o melhor de todos os que já subiram a rampa.
Mas o da camisa engomadinha, que foi chacota nacional, repousa em berço esplêndido. Bonitão, charmoso, detentor de centenas de milhares de votos de moças carentes, viúvas honestas e moçoilas casamenteiras deveria bater o pênalti.
Por isso eu leio. Refugio-me nas páginas almiscaradas de qualquer romance. O melhor lugar do mundo, sem dúvida é dentro de um abraço. Mas depois de ter saboreado páginas que nos transportem a um abraço maior que o mundo, naquele que comporte todos os sonhos compactados em uma “timeline” infinita, gigantesca, maior que a distância do cavaleiro diante da pedra de onde a escalibur será retirada com vigor, certamente, mas com sabedoria no manuseio das mãos.
O jogador que há em mim está diante da meta. A bola se ajeita entre os dedos minúsculos que a repousam sobre a marca da cal. Ouço atentamente o ruído silencioso das arquibancadas enquanto aguardo o apito da juíza. Alguém do STF pede vistas e o prazo dilatado para a cobrança vai nos levar à bancarrota. Nas prateleiras das melhores casas do ramo. Adquira já o seu, seja exemplar dessa mudança. Passando a bola para a frente!
REFERÊNCIA
RODRIGUES, Mário. A Cobrança. Rio de Janeiro: Record, 2018.
[1] DUALIBI DAS CITAÇÕES/Roberto Dualibi – São Paulo: Mandarim, 2000. P. 327.