Monstro à mostra: consigo sequer imaginar / Bicho que come gente: corpo fora de si / Amor que come a gente por dentro: cidade dentro dela / Palavra na boca do estômago: rebenta da morte dos outros / Floresta tímida: cidade contra / Migração dentro: ir embora e ainda assim ficar / Trem movido a cadáveres: fantasma fora dos trilhos / Palavra na ponta da língua: gostinho de carne no osso pelado.

A sequência acima contém fragmentos de algumas das partes que subdividem a obra Desesterro, de Sheyla Smanioto. Vencedora do Prêmio SESC na categoria romance, em 2015, o livro narra de maneira extremamente metafórica uma realidade cada vez mais presente em nosso cotidiano: o feminicídio. Em que pese a força bruta do elemento sociológico, antropológico e derivações, não se trata de um libelo, obra panfletária ou coisa que o valha. É Literatura – e com “L” maiúsculo.

Ao associarmos a condição feminina, sua subalternidade em uma sociedade machista ao aspecto social contido em históricos contemporâneos, insistimos em negar a igualdade em termos de oportunidade para mais da metade da população de eleitores em nosso país. Com Djamila Ribeiro e demais estudiosos do feminismo negro, temos aprendido que o Interseccionismo é a palavra chave para se começar a mudar as práticas sociais. Não se pode falar de nova onda feminista sem levarmos em conta que mulheres pretas são o outro das brancas, que por sua vez o são do homem branco. Como mudar?

Segundo o conjunto de pensadores e pensadoras antenados com o pensamento de Angela Davis, e outras mais, para se discutir o gênero, há necessariamente que se discutir o social e as questões étnicas. Só assim compreenderemos bem o que Benedita da Silva em longínqua campanha eleitoral para o senado dizia: negra, pobre e favelada, três níveis de discriminação sofridas por uma comunidade inteira.

Sheyla Smanioto contorna essa problemática com as ferramentas que a escrita criativa põe a seu favor: uma linguagem ágil e veloz que desconstrói a narrativa linear, avança em meio à floresta de símbolos desenhada pela prosa poética de Baudelaire, nos finais do século XIX indo ao encontro de sujeitos travestidos de objetos que comandam a epifania sígnica que se esconde por trás de significantes linguísticos.

A síntese da problemática talvez se apresente antes mesmo do final da escrita, embora haja pistas o tempo todo sobre o que há de terrível e que se desenha aos olhos do leitor.

– Diacho, eram duas palavras, não uma!

– E também não eram assim compridas.

– Não tem respeito nenhum com a gente.

– Nem com a gente nem com nada, como assim febre é Vilaboinha?

– Mas eu gostei tanto daquele como é mesmo…?

– qual? O filha? Eu gostei do que fala filha come a gente por dentro.

– Não, eu gostei do outro, como é mesmo?

– O do urubu que brota da morte? Eu adoro esse.

– Não, o outro.

– O da cidade?

– Não.

– O do circo?

– Não.

– Então o do monstro?

– Também não.

– Diacho, se gostasse tanto assim já tinha lembrado.

(SMANIOTO, 2016, p. 222).

Esse diálogo se encontra à página 222, o que me lembra da música de Gilberto Gil Expresso 222 – que parte direto pra depois. Parte direto de Central do Brasil pra depois do ano 2000. Projeções de uma periferia que no milênio seguinte estaria em destaque de alguma forma na cultura nacional. Repare no moto contínuo do primeiro e último verbete: Diacho!

Sheyla traz a voz da exclusão, do contraste, da miséria, da linha da pobreza que se confunde com a própria dignidade humana, e seus limites. O cão que atormenta o espírito do mal; a consciência atormentada pela presença do mal; o terceiro olho como um retrato mergulhado na terra profunda de si mesmo.

Banana, pênis, gorila. Terra para se enterrar. “Tonho tantas vezes batendo em Fátima ela nem se importa, mulher nenhuma morreu de apanhar do marido, exceto as que estão mortas” (idem, p. 106).  E ele não para, precisa deter a posse, assumir o instinto, o mando, a posse da terra: “Vamos com tudo, vamos desenterrar, mete a pá, anda, mete a pá, mete a pá até a terra cansar” (idem, p. 115).

Os urubus rondando a terra batida, à procura de carniça. “Nem toda terra é casa e nem todo homem é marido, acha que qualquer homem para de bater antes da mulher começar a rezar?” (idem, p. 132). Mas a violência denunciada por Desesterro não é apenas a da porrada: “Tem carne que só apanha de palavra, então me ouve, desgraça: você está sendo morta, você nunca viveu. Que mais podia ir sendo? Nasceu de uma morte, nasceu de minha mãe morta, só podia mesmo não estar vivendo” (idem, p. 188).

O vento falava, batia no corpo. A ideia de que “o esquecimento é o crime sem corpo”, me persegue. O livro de Sheyla é perturbador pela realidade que esfrega na cara do leitor. Essa realidade incontida que vai além do noticiário da televisão. Que invade as letras de rappers para além da indústria cultural e do protagonismo da periferia. Os demais subtítulos da obra parecem gritar mais alto formando um poema; quem sabe até alguma trilha para slam das minas:

Três olhos. Duas vezes nascida. Vinte e um dedos sem contar essa verruga. Na boca tinha unhas. Vai dizer que você não tinha percebido o que vinha? Se pelo menos Cida estivesse viva. A menina nunca quis matar a avó. Um toco mais a parte que falta. Olhos tomados. Espera. Isso a gente precisa falar. Mas não, vai, deixa pra lá. Estômago esquerdo, estomâgo direito. Não falei que tinha coisa? Pele e osso. Diacho. Você não vai acreditar no que aconteceu depois. Não falei que a magrela ia dar seu jeito? Maria menina olha o corpo, olha o vento, olha o vento e, santo Deus, vê muito mais que o vento. Maria menina vê a gente chegando. Órgãos secretos.

 

 

 

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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