Monstro à mostra: consigo sequer imaginar / Bicho que come gente: corpo fora de si / Amor que come a gente por dentro: cidade dentro dela / Palavra na boca do estômago: rebenta da morte dos outros / Floresta tímida: cidade contra / Migração dentro: ir embora e ainda assim ficar / Trem movido a cadáveres: fantasma fora dos trilhos / Palavra na ponta da língua: gostinho de carne no osso pelado.
A sequência acima contém fragmentos de algumas das partes que subdividem a obra Desesterro, de Sheyla Smanioto. Vencedora do Prêmio SESC na categoria romance, em 2015, o livro narra de maneira extremamente metafórica uma realidade cada vez mais presente em nosso cotidiano: o feminicídio. Em que pese a força bruta do elemento sociológico, antropológico e derivações, não se trata de um libelo, obra panfletária ou coisa que o valha. É Literatura – e com “L” maiúsculo.
Segundo o conjunto de pensadores e pensadoras antenados com o pensamento de Angela Davis, e outras mais, para se discutir o gênero, há necessariamente que se discutir o social e as questões étnicas. Só assim compreenderemos bem o que Benedita da Silva em longínqua campanha eleitoral para o senado dizia: negra, pobre e favelada, três níveis de discriminação sofridas por uma comunidade inteira.
A síntese da problemática talvez se apresente antes mesmo do final da escrita, embora haja pistas o tempo todo sobre o que há de terrível e que se desenha aos olhos do leitor.
– Diacho, eram duas palavras, não uma!
– E também não eram assim compridas.
– Não tem respeito nenhum com a gente.
– Nem com a gente nem com nada, como assim febre é Vilaboinha?
– Mas eu gostei tanto daquele como é mesmo…?
– qual? O filha? Eu gostei do que fala filha come a gente por dentro.
– Não, eu gostei do outro, como é mesmo?
– O do urubu que brota da morte? Eu adoro esse.
– Não, o outro.
– O da cidade?
– Não.
– O do circo?
– Não.
– Então o do monstro?
– Também não.
– Diacho, se gostasse tanto assim já tinha lembrado.
(SMANIOTO, 2016, p. 222).
Esse diálogo se encontra à página 222, o que me lembra da música de Gilberto Gil Expresso 222 – que parte direto pra depois. Parte direto de Central do Brasil pra depois do ano 2000. Projeções de uma periferia que no milênio seguinte estaria em destaque de alguma forma na cultura nacional. Repare no moto contínuo do primeiro e último verbete: Diacho!
Banana, pênis, gorila. Terra para se enterrar. “Tonho tantas vezes batendo em Fátima ela nem se importa, mulher nenhuma morreu de apanhar do marido, exceto as que estão mortas” (idem, p. 106). E ele não para, precisa deter a posse, assumir o instinto, o mando, a posse da terra: “Vamos com tudo, vamos desenterrar, mete a pá, anda, mete a pá, mete a pá até a terra cansar” (idem, p. 115).
Os urubus rondando a terra batida, à procura de carniça. “Nem toda terra é casa e nem todo homem é marido, acha que qualquer homem para de bater antes da mulher começar a rezar?” (idem, p. 132). Mas a violência denunciada por Desesterro não é apenas a da porrada: “Tem carne que só apanha de palavra, então me ouve, desgraça: você está sendo morta, você nunca viveu. Que mais podia ir sendo? Nasceu de uma morte, nasceu de minha mãe morta, só podia mesmo não estar vivendo” (idem, p. 188).
Três olhos. Duas vezes nascida. Vinte e um dedos sem contar essa verruga. Na boca tinha unhas. Vai dizer que você não tinha percebido o que vinha? Se pelo menos Cida estivesse viva. A menina nunca quis matar a avó. Um toco mais a parte que falta. Olhos tomados. Espera. Isso a gente precisa falar. Mas não, vai, deixa pra lá. Estômago esquerdo, estomâgo direito. Não falei que tinha coisa? Pele e osso. Diacho. Você não vai acreditar no que aconteceu depois. Não falei que a magrela ia dar seu jeito? Maria menina olha o corpo, olha o vento, olha o vento e, santo Deus, vê muito mais que o vento. Maria menina vê a gente chegando. Órgãos secretos.
Ótimo 😍😍😍😘