Edelson Santana

Começo a escrever no 40° dia de quarentena. Dicionários garantem ser o último dos quarenta dias de reclusão. Já a língua, viva que é, atribui outras significações à palavra derivada de um número exato. O signo é arbitrário, os sentidos linguísticos são atribuídos em função do contexto social, os significados desconhecem regras… e o período de isolamento, assim, se flexibiliza para um tempo incerto, quase à mercê do acaso.

Lembro meus planos dos primeiros dias. Àquela altura, em propalada pandemia, o domínio do coronavírus começava a deixar a China e passava a países europeus, abstração distante da qual só se convinha esquivar. As medidas restritivas aos poucos eram adotadas nas cidades brasileiras e esperava-se até que o vírus não resistisse ao calor cuiabano. O desespero ainda estava incubado…

Na salvação pelo mundo isolado, o meu refúgio estaria na literatura, planejei. Em uma quarentena, pensava eu, ler um livro poderia ser mais interessante do que acompanhar as notícias, fatos cotidianos cujos registros vão compondo as narrativas históricas. A literatura encerra mais filosofia e elevação do que a história, pois não narra exatamente o que aconteceu, mas o que poderia ter acontecido, o que é possível segundo a verossimilhança ou a necessidade – fechado com Aristóteles!

Imagem de IvanPais por Pixabay

A ideia original naquele início de distanciamento social era colocar em dia a leitura de uma pilha de exemplares acumulados devido à concorrência com as tarefas de quando a rotina existia. O dia a dia agora se modificaria; a arte, enfim, a se sobrepor às coisas da vida. Decidi, então, começar pelos livros que recebo mensalmente de um clube literário.

A primeira escolha, não sei se a melhor para o momento, foi Um homem bom é difícil de encontrar, lançado pela escritora Flannery O’Connor em 1955, época de intensa segregação racial no sul dos Estados Unidos. O lado mais sombrio na representação de homens comuns, a violência naturalizada nas relações humanas, o mal banalizado, a barbárie imperando num mundo à revelia… Uma realidade que me parecia tão atual transparecia a cada conto, a começar pelo que dá título ao livro. “A vida que você salva pode ser sua”, outra narrativa de realismo cruel, foi lida no momento em que o líder do país minimizava em cadeia nacional a pandemia e, na contramão de todos os cuidados recomendados por especialistas em saúde, lançava a população ao caminho da morte.

Imagem de Valerio Errani por Pixabay

O jeito foi abandonar a prosa e buscar alento na poesia. Pensei na sofisticação de uma Sophia de Mello, a quem eu sempre recorro, mas o momento pedia as blagues ligeiras de Francisco Alvim. Num rápido passeio pelos versos, rio, penso, sinto: “Vou voltar a trabalhar/na horta do irmão Lázaro/Lá não se lê jornal/Não se ouve rádio/Só se enche caixa de quiabo”. As elipses, os silêncios, os intervalos de cada um dos poemas-pílulas, tão prenhes de significados, davam brecha para reflexões sobre o mundo circundante. E as notícias invadiam a minha mente em números e gráficos e logo se espalhavam pelas redes sociais. A “gripezinha” começava uma escalada nada fantasiosa, em agressivo crescimento exponencial, os contágios já eram contados em milhares e as mortes avançavam por lugares diversos. Nomes conhecidos passaram a estampar manchetes de sites locais e a doença já tinha rosto.

Fujo para os clássicos e tento me abrigar mais uma vez no universo paralelo de Dom Quixote. As aventuras do engenhoso fidalgo que, de tanto ler livros de cavalaria, tornou-se ele próprio o cavaleiro da triste figura a vagar por um mundo imaginário. A fantasia para, alquimicamente, transformar a realidade imediata em algo transcendental. A vida real suplantada pela ficção, tudo o que eu queria. No entanto, paro já no vocativo do prólogo: “Desocupado leitor…” Ah, o romance moderno, a forma literária escolhida pela classe burguesa, me lembra que estou em casa ainda de meias e que produzo nada além que ruminações mentais. Nada produzo, enfim.

Uma consulta médica pôs fim ao até então firme propósito de fugere urbem. A cidade, mais vazia, vivenciava o dilema nacional sobre a necessidade de salvar o CPF ou o CNPJ. Mortes se multiplicavam, e de Brasília vinha um aceno oficial: “e daí?”. Seres humanos esperavam ônibus para manter os empregos. Filas dobravam quarteirões sob o sol à espera de um auxílio que lhes garantisse breve subsistência. E pessoas sem nome continuavam vagando pelo beco, tão invisíveis quanto o vírus. A vida às penas, sem mistificação.

Imagem de Daniel Kirsch por Pixabay

De repente, a literatura perde a graça… Volto para as incontáveis lives, aquelas em que artistas enchem a cara, alimentam o ego e violentam a música pela internet. Enquanto isso, na tevê, a crônica da morte é lida a cada pronunciamento presidencial em rede nacional. Ao tempo em que a linha de contágio pelo coronavírus ascende, os noticiários revelam uma nação sem comando, em total indigência política. A cada sexta-feira, uma surpresa: ministros saem, outros caem, e um vídeo surreal leva ao público a obscenidade à solta em uma reunião de governo que sequer menciona cuidados à população.

Nem mais consigo escrever… A história dessa vez supera a ficção, e todos os fatos atuais, possivelmente, poderão ser lidos um dia num romance de realismo fantástico escrito por um autor mais atento. Termino este texto no 60º dia de quarentena, palavra que agora firma o sentido de um período de tempo indeterminado de isolamento. Os significados estão sempre livres. Nós não estamos.

 

Edelson Santana é jornalista, mestre em estudos linguísticos e literários e 
atua como revisor de textos

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