A noite aparece bem mais tarde durante a primavera europeia. São quase 20h aqui em Nuremberg, na Alemanha, e o sol ainda teima em dar as caras. Encaro as nuvens e lembro que o dia todo foi bonito, quente e ensolarado, mas eu lamento por não ter aproveitado melhor.
É que ainda estava sob o efeito zumbi por conta da ressaca da noite anterior. Mas a Noite Azul (ou Die Blaue Nacht) mal tinha começado e a cidade prometia fazer jus ao clima. Iria fervilhar. Curiosa pra ver como seria, peguei o metrô e segui meu caminho até a multidão.
No dia 6 de maio de 2017, pela 18ª vez, as luzes do centro de Nuremberg brilhavam um azul safira em homenagem a um do grandes eventos culturais e artísticos da Europa, Die Blaue Nacht. O tema desse ano era Odisseia e eram tantas as atrações que você se perdia.
O preço do ticket individual era salgado, mas te dava acesso a mais de setenta opções diferentes que incluíam música, teatro, dança, museus, performances e instalações. O difícil era escolher, já que a maioria deles não duraria até às 2h da manhã.
Acotovelando-me em meio ao mar de gente, senti meus ouvidos sensíveis e confusos com tantas línguas diferentes que absorvia durante o caminho. Naquela Babel cultural ouvia-se espanhol, inglês, italiano, francês, línguas asiáticas (coreano, japonês, mandarim?), árabe, tcheco e outras que nem sei dizer.
Turistas, refugiados, negros, amarelos e brancos compunham um cenário multidiversificado. Uns com chifres que piscavam uma luz azul fluorescente, outros com um broche pisca-pisca. Algumas lojas, restaurantes e bares também decidiram aderir à onda. Tá tudo azul. Completamente blue.
Como formigas operárias rumo ao formigueiro, fui levada pela onda em fila até o castelo imperial, o Kaiserburg, situado no ponto mais alto da cidade numa extensa colina. Já eram pouco mais de 21h quando a noite finalmente deu as caras e os projetores começaram a funcionar.
Numa dança de cores, sons e formas, a artista Barbara Engelhardt deu vida à construção de pedra ao projetar sua arte fazendo referências à temática, com trechos do poema de Homero. Só que infelizmente não vi nenhum ciclope. Pena.
O antigo prédio da Prefeitura na praça central também foi contemplado pelo trabalho de tom futurístico do berlinense Philipp Geist. Numa jornada sensorial, os pelos do corpo arrepiam a cada som pesado da obra intitulada Into the Blue.
Nela o artista embarca em um jogo de palavras, numa espécie de não-narrativa com composições abstratas e pictóricas e elementos figurativos da história da Odisseia. As imagens evocam andanças dos humanos em que palavras que remetem à esperança pela felicidade se alternam com o medo e desespero.
Alguns poucos artistas de rua também tomavam o espaço, timidamente. Eu que não tinha comprado ingresso achando que ele valeria mais para museus (vários dos quais eu já havia visitado) e que eu acabaria vendo o suficiente nas ruas, acabei com uma pontada de decepção no peito.
Um ou outro fazendo sua performance aqui e ali, mas pareciam pouco apreciados, como num dia comum que muitos têm que enfrentar pra ganhar o pão. É, pelo jeito Nürnberg não é calorosa e aberta para artistas independentes como a capital cosmopolita, Berlim. De um lado, o festival provou que a cultura elitizada da Europa também vale para a arte.
Mas é verdade que eu sempre achei única e pura a experiência de andar pelos centros das cidades durante à noite. E Nuremberg, com seu charme de cidade medieval e trazendo uma sensação de segurança infinitamente maior do que nas cidades brasileiras, tornava tudo aquilo ainda mais prazeroso.
“Uma luz azul me guia, com a firmeza e os lampejos do farol”.
E assim fui vagueando, seguindo o fluxo dos postes celestes expostos nas ruas, becos e ladeiras de pedra. Cada caminho iluminado parecia angustiado por contar uma história. Ou começar uma.
Segurando firmemente suas garrafas de cerveja, os alemães faziam questão de mostrar que o significado da palavra Blau (ou azul) na língua germânica nada tem a ver com estar triste, deprimido, mas sim bêbado e feliz. E era assim que eu me sentia.
Milhares de corpos de todas as cores e etnias serpenteavam pelo meio, pelos cantos, subiam e desciam ladeiras e ruas estreitas. Finalmente, equilibrando-me em meio aos paralelepípedos, sentia-me satisfeita por completar a minha Odisseia. E nem precisei me disfarçar de mendigo como Ulisses pra voltar pra casa.
Até o fim da jornada, percebi que a atmosfera era de arte, arte, arte em sua mais pura forma. E com ela despertavam-se emoções, sentimentos indescritíveis. Risadas, gritos, cantos, expressões de encantamento, espanto e admiração. Tudo de mais real que podemos encontrar na alma humana.