Há mais de 30 anos, Margaret Atwood criava um universo distópico, onde mulheres eram vistas como meras reprodutoras e por isso, submetidas a todo tipo de tortura e humilhação em nome da religião. O corpo visto como um objeto, que deve servir aos homens, gerando proles em um futuro infértil. Nesse mundo, mulheres não podem ler, não levantam suas vozes, são proibidas de se expressar, de rir, de escolher, de ser livre. Por mais chocante que seja esse cenário, ele não está distante da realidade, afinal, a autora utilizou acontecimentos históricos para pintar de vermelho-sangue a narrativa literária.

O Conto da aia apresenta uma personagem principal que conta sobre toda a dor e sofrimento que lhe infligiram nesse lugar chamado Gilead, os Estados Unidos de outrora. Com um golpe orquestrado em todo o país, uma nova nação emergia – ou melhor, uma teocracia. É nesse ambiente que June tenta não esquecer quem é em uma luta contra o sistema imposto, que sequestrara crianças de suas mães e destituía as mulheres de qualquer direito.

O livro ganhou uma dimensão ainda mais perturbadora com o lançamento da série The Handmaids Tale protagonizada por Elisabeth Moss. Em sua quarta temporada, o enredo segue surpreendente, mesmo para quem já se aventurou pela literatura de Atwood. Arrepios na pele e embrulho no estômago são constantes e acompanham os espectadores no desenrolar de todos os episódios.

Gravações da série The Handmaid’s Tale no Lincoln Memorial – Foto Victoria Pickering

Em Os testamentos, a sequência do romance inicial, o regime de Gilead resiste e continua implacável. Três mulheres compartilham suas memórias enquanto encaminham-se, juntas, para o derradeiro desfecho da saga.

Margaret Atwood assim descreve ao final do livro: “Porém, antes de se tornar palavras na página, Os testamentos foi escrito em parte nas cabeças dos leitores de seu antecessor, O conto da aia, que não paravam de perguntar o que tinha acontecido após o fim daquele romance. Trinta e cinco anos é um bom tempo para se pensar em respostas possíveis, e as respostas mudaram tanto quanto mudou a sociedade, e conforme possibilidades se tornaram realidades. Os cidadãos de muitos países, inclusive os Estados Unidos, estão atualmente sob muito mais pressão do que estavam há três décadas”, (pág. 445, Os testamentos).

O desespero das mulheres que vivem sob o regime e as constantes tentativas para não sucumbir à loucura retratam algo não muito distante. Hoje, aqui, agora, mulheres continuam a ser violentadas, estupradas, assassinadas. Corpo descartáveis cuja única serventia é parir, gerar uma nova vida, que será usada e exaurida em nome dos poderosos. Homens. Os mesmos que mandam e desmandam, os mesmos que decidem sobre os nossos corpos. Aqueles que ditam as leis e aplicam as penas. Aqueles que nos destroem todos os dias e operam a camada invisível do patriarcado, enraizado na sociedade.

Gravações da série The Handmaid’s Tale no Lincoln Memorial – Foto Victoria Pickering

“Uma pergunta a respeito de O conto da aia que sempre retornava era: como foi a queda de Gilead? Os testamentos foi escrito para responder a essa pergunta. Totalitarismos podem desmoronar de dentro para fora, à medida que deixam de cumprir as promessas que os levaram ao poder; ou podem ser atacados de fora para dentro; ou ambas as coisas. Não há fórmulas infalíveis, já que muito pouca coisa na história é inevitável”, explica a autora (pág. 445, Os testamentos).

Leitura obrigatória para entender os contornos daquilo que vivemos atualmente e lembrar do que ensina Simone de Beauvoir: os direitos conquistados pelas mulheres são frágeis e podem ser tomados a qualquer momento. Precisamos seguir vigilantes.

Gravações da série The Handmaid’s Tale no Lincoln Memorial – Foto Victoria Pickering

Sob o nosso Olho. 

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

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