Por Rafaella Elika Borges*
Na deserta cidade de Santo Carmo, em um bar de estrada perto do vilarejo de Guadalupe havia uma garçonete de cabelos negros e olhos esotéricos que servia bebidas a cavaleiros babões e homens de faroeste, que vira e mexe apareciam de certas encruzilhadas para tomar um copo de algo forte que os deixassem alerta a qualquer raspão de bala.
Em resumo aquele era o ninho da iniquidade e insalubridade.
Do outro lado de Guadalupe, Jone Cuervo rondava com seu cavalo cinza pelo derredor de qualquer alma insatisfeita com o dom da vida. Diziam uns que Jone não tinha espírito nem alma, acreditavam que ele era um demônio sem instinto de direção que cobrava para matar, pois não sabia voltar para o inferno, outros falavam que o próprio Lúcifer o desafiara e em troca da derrota o amaldiçoou trocando-lhe a alma por um par de botas novas. O ponto é que Jone era afamado por ser o cavaleiro matador mais perverso de Santo Carmo.
Nas madrugadas fétidas do bar de estrada, a garçonete curvilínea por trás do balcão servia rum ao som do rádio na parte esquerda do recinto, o bar era calmo e cheirava a sangue seco, feito inteiro de madeira rangenta e um toque claustrofóbico no teto e janelas, era encardido de solidão e afogado em noites mal dormidas, cheio de pilares e olhares desconfiados, ali era o melhor lugar para se pensar num epitáfio ou num plano de assalto a um erário.
Mas o intrigante de tudo era que Jone três vezes na semana visitava o bar de estrada.
Noites se passavam e a garçonete Helena notava que Jone não sentava-se mais no canto perto da porta de entrada, mas agora do lado direito do balcão perto da porta que dava em seu quarto, aquilo era estranho, mas algo inequívoco era que Helena estava de alguma forma nos pensamentos do matador.
Mas de que forma? – Fatigava enquanto maquinava Helena.
A garçonete espasmodicamente tomada pelo pânico dos conturbados pensamentos, teve o desamado ato de insolentemente derrubar rum na manga longa e suja da capa de Jone. Pacificamente, mas com a feição fechada, o matador levantou o rosto num movimento de lisura, deixando a boca e a barba mal feita destapadas pelo chapéu, depois de segundos dardeando a consciência de Helena virou seu copo e saiu sem trocar palavras, deixando os três clientes estarrecidos e os olhos da moça pingando lágrimas de acaso, e unicamente por vontade de Jone foi somente isso que pingara naquela madrugada.
Uma semana se passou e o cavaleiro voltou ao bar, Helena rezava para a imagem na parede da entrada, pedia para que sua sede não fosse de vingança… e não foi.
Aquela noite Jone fez um gesto com a mão pedindo dois copos de rum no balcão, subitamente a moça pegou o desejado e pôs-se a limpar as garrafas vazias que estavam espalhadas pela mesa atrás do balcão.
“Você me lembra uma pessoa”.
Só isso disse o capataz do Diabo enquanto apontava ao copo cheio de rum que ela mesma servira. Helena inerte ao homem franziu os olhos e apertou os lábios, aceitando o copo e a situação, sentou perto então do suposto matador vazio de alma e coração. Conversaram durante um tempo e a moça colocou-se a admirar os estigmas da vida nas mãos de Jone, o homem então, com as mesmas mãos tocou Helena com pudor nos braços, ela se levantou e abriu a porta de seu quarto esperando a sintonia do homem. Entraram e lá ficaram por um bom tempo. Depois da longa madrugada de descobertas e afago a moça deitou sobre o peito do capataz, na cama pequena que ficava perto da janela, arregalou os olhos e se invadiu por um acervo de medo.
O que era aquilo? Jone podia metaforicamente não ter alma nem espírito ou até denotativamente, mas… não ter coração? O homem não tinha coração?
Não.
Jone Cuervo em 1692 matou a esposa enaltecido pelas ilusões de traição de um amor bandido pelo qual ele não tinha controle e enterrou-a no cemitério de Guadalupe por conta própria, passou-se o tempo e a culpa foi pessoalmente bater em sua porta, açoitado pela amada desceu até o inferno e pediu uma segunda chance, em troca deixou seu coração ainda batendo no túmulo da morta como forma de petição, o Diabo então aceitou o pedido com uma condição, Jone teria que viver para sempre, somente com a culpa e desde então o cavalheiro ronda a estrada procurando sua esposa que em algum lugar está com seu coração frio, agora batendo no peito.
A lascívia aquela noite tomou conta de Helena de uma tal forma que aos tropeços saiu do quarto abotoando o vestido que pela luxúria foi tirado. A moça fez amor com o cavalheiro matador que se puniu a viver culpado.
Anos se passaram e a lenda de Jone Cuervo continuou viva no vilarejo de Guadalupe e a lenda de Helena, a moça insana e curvilínea que fez amor com um fantasma sem espiríto, alma e coração.
Agora vive em um hospício, por acreditar demais na impureza que viveu com um capataz do Diabo que sempre foi história para contar.
*Rafaella Elika Borges é escritora e lança neste ano o livro Me Literatura
hei! Jone Cuervo onde está sua arma?
na lança ferida dos corações?
ou em um pasto relvado?
Helena range a espera em quartos brancos
em cordas amarrada
e pílulas anestésicas
o amor fere
o amor fere
lambe lendas desfere trovas
rodeios, bravuras e solidão
o coração enterrado em fria tumba
aguarda o assalto vingador
o amor fere
o amor fere
liturgia diabólica é segredo sagrado
Jone Cuervo desvia na próxima encruzilhada
arremate de cio
lembrança macabra
a dor lança balas
encruzilhadas
vampiro tardio
o amor fere
o amor fere
Helena disfarça o amor lambendo feridas
nas madrugadas frias
Gostei, André!
Maravilhoso e intrigante! Uns dos meus prediletos. Parabéns Rafaella Elika, seu talento é indiscutível.