Vivemos num novo período da história do planeta em que tanto geólogos quanto antropólogos são enfáticos em chamar de Antropoceno. Essa época consiste, em resumo, no controle dos seres humanos sobre a Natureza. Apropriando-se descontroladamente dos recursos naturais, nós acabamos por modificar sua biodiversidade de uma forma sem precedentes, causando impactos socioambientais irreversíveis e muitas incertezas quanto ao futuro da vida na Terra. Mas isso não tem nada de novo, já que a destruição ambiental vem desde a Revolução Industrial do século XIX.
Mesmo após inúmeras conferências mundiais sobre o meio ambiente desde os anos 60 e de um debate mais aprofundado sobre o tema, ainda hoje o processo insano de produção e o padrão acelerado de consumo em grande escala – que ocorre desde a década de 50 – não dão sinais significativos de que vão pisar nos freios. Isso graças, principalmente, às constantes falhas em implementação de políticas públicas eficientes e no descaso das grandes potências econômicas mundiais para solucionar um problema que eventualmente afeta a todos, só que em tempos e escalas diferentes. Mas há um movimento que tem tomado força nos últimos anos e pretende reverter essa lógica tecnocrata: o ecofeminismo.
A palavra ecofeminismo vem da junção dos termos “ecologia”, que significa a grosso modo “o estudo da casa”, e feminismo, que abarca a luta de mulheres e homens por direitos iguais e contra as opressões de gênero produzidas pelo sistema patriarcal (o atual sistema social, econômico e político em que vivemos e que é liderado por homens em posições de privilégio). O termo foi cunhado pela primeira vez nos anos 70 pela escritora francesa Fraçoise d’Eaubonne em seu livro “Le Feminisme ou la Mort” (Feminismo ou Morte) e posteriormente popularizou-se ao redor do mundo. Mas no Brasil ainda precisa avançar.
No livro “Ecofeminism and Globalization: exploring culture, context and religion” (“Ecofeminismo e Globalização: explorando cultura, contexto e religião”) Heather Eaton e Lois Ann Lorentzen, explicam que essa vertente do feminismo pode ser considerada um “guarda-chuva”, porque abriga diversos outros conceitos de sistemas de dominação injustificados como o racismo, capitalismo, gênero, etnicismo e classismo. Sendo assim, tanto a luta contra a exploração da natureza quanto contra as variadas formas de opressões convergem entre si.
Falar de crise ambiental é falar de ecofeminismo. As mulheres, principalmente as habitantes de países do hemisfério Sul, são o grupo mais afetado. Segundo o relatório Sobre a Situação da População Mundial, elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), estão mais vulneráveis às mudanças climáticas, à escassez de água e a desastres naturais. Em muitos países elas representam a maior força de trabalho agrícola, além de serem responsáveis pela alimentação e gestão da economia do lar e também tendem a ter menos oportunidade de geração de renda.
Outro fato que contribui para a urgência da pauta ecofeminista é que nós mulheres somos maioria nos movimentos ambientais e na defesa dos animais, como lembra a filósofa argentina Alicia Puelo, autora do livro “Ecofeminismo: para otro mundo posible” (Ecofeminismo: para outro mundo possível). Para ela, nossa autoconsciência alcançou um estado que também pode superar as barreiras de séculos que nos impedem de sermos incluídas no âmbito do trabalho assalariado, da cultura e da vida política. Temos em mãos a oportunidade de ouro de protagonizar uma transformação radical.
Uma das mais influentes ativistas ambientais e ecofeministas, a indiana Vandana Shiva, denuncia que as mulheres rurais da Índia, inseridas em uma economia de subsistência, tem vivenciado a diminuição trágica da sua qualidade de vida com a chegada da exploração “racional” dirigida ao mercado internacional. Para lutar contra isso, Shiva foi uma das criadoras do projeto Navdanya, uma ONG que promove a conservação da biodiversidade, da agricultura orgânica, dos direitos dos pequenos produtores rurais e da proteção de sementes.
Em entrevista concedida à revista de Barcelona “Ecología Política”, a ativista explica que Navdanya significa “nove sementes”. “Navdanya supõe uma integração da mulher nas tarefas coletivas que outros tipos de agricultura as negam para condená-las a um papel secundário e subordinado”. Segundo ela, se trata de um movimento que devolve à mulher seus atributos físicos e espirituais para que desempenhem um papel crucial na proteção da biodiversidade e na prática de uma agricultura sustentável dentro de suas comunidades.
O Movimento das Mulheres Yarang (MMY), do povo Ikpeng, que abrange as aldeias Moygu e Arayo do médio Xingu, é um dos grandes exemplos dessa resistência e do empoderamento feminino das coletoras da Terra Indígena do Xingu (TIX), tendo se destacado como uma iniciativa de sucesso. Em artigo publicado no site do Instituto Socioambiental (ISA), Marina Yamaoka explica que o grupo escolheu o nome yarang – “saúva”, em ikpeng – já que assim como as formigas, elas recolhem as sementes do chão e as levam para limpar em casa.
Justiça ambiental e participação popular
A jornalista Kathryn Miles adverte que o ecofeminismo contemporâneo deve ser desenvolvido para reconhecer os efeitos reais de raça, classe, etnia e sexualidade na posição social da mulher. “As mulheres envolvidas em questões de justiça ambiental e as mulheres que representam culturas minoritárias trabalharam para estabelecer seu próprio senso de ecofeminismo para incluir culturas locais e espiritualidade, uma celebração de seus papéis como mães e cuidadores e um reconhecimento das formas em que a colonização ocidental comprometeu essas crenças”.
Reivindicações em torno da preservação ambiental já são clichê para os milhares de movimentos ambientalistas ao redor do mundo. No entanto, Joni Seager lembra que apesar de serem mais ativas nessas campanhas, as mulheres ainda são muito menos representadas como lideranças. É preciso tomar com força e vontade todos esses espaços, ganhando autonomia e protagonismo e unindo outras mulheres à causa.
Uma maior pressão para com as políticas econômicas de grandes empresas, aliada a manifestações populares, ao fortalecimento de organizações não-governamentais ambientalistas e a ações críticas ao atual sistema político-econômico que privilegia ricos em detrimento dos pobres, poderão ser capazes de construir uma nova realidade baseada na racionalidade ecológica, no controle democrático e na igualdade social. É hora de dar as mãos e evitar que “a crônica de uma morte anunciada”, nesse caso, a da Natureza, torne-se uma realidade fatal.
REFERÊNCIAS
EATON, Heahter; LORENTZEN, Lois Ann. Ecofeminism and Globalization: Exploring Culture, Context, and Religion. Rowman & Littlefield, 2003.
UNFPA. Relatório sobre a Situação da População Mundial 2009. Disponível em: <http://www.unfpa.org.br/swop2009/swop2009.pdf > Acesso em: 13/03/2018.
MILES, Kathryn. Ecofeminsm. Disponível em:<http://global.britannica.com/topic/ecofeminism#ref1187988> acesso em 12/03/2018.
PULEO, Alícia H. Ecofeminismo: para otro mundo posible. Segunda Edición. Valência (Espanha): Ediciónes Cátedra Universitat de València – Instituto de la Mujer, 2013.
SHIVA, Vandana. Staying Alive: Women, Ecology and Development. Londres: Zed Books, 1992.
YAMAOKA, M. Semear o futuro na bacia do Xingu. Disponível em: <https://pib.socioambiental.org/pt/noticias?id=178716&id_pov=298> acesso em: 28 jul. 2017.