Ramon Carlos

Escrever sobre Manoel Carlos Karam, para mim é muito simples: É meu mestre!

Estava guardando essas palavras para o Prêmio Nobel, Pulitzer ou até mesmo o Tortuguita, mas tive uma honra maior acontecendo, por isso dessas palavras.

Há uns meses, consegui contato com o filho do Manoel, o gentilíssimo Bruno Karam, que na maior simplicidade e honestidade, enviou-me do seu acervo particular, muitas obras do seu pai, que eu infelizmente não conseguia encontrar. Bruno, meu caro, meus mais sinceros cumprimentos.

Eu andava em círculos dentro do sebo, no horário de intervalo do trabalho, fazia um calor dos diabos, e aquele lugar minúsculo e empoeirado realmente testava minha persistência. Procurava um livro, qualquer livro que me chamasse atenção e que fosse de um autor ainda desconhecido por mim, mas tinha que ser brasileiro, era meu plano ao correr os olhos pelos poetas, romancistas e contistas.

Acabando um pouco com a magia (ou deixando-a ainda mais bela), optei por comprar o livro mais barato que encontrei, o livro se chamava “Encrenca”, de Manoel Carlos Karam. Em que bela encrenca fui me meter, um romance rápido, tanto pela quantidade de páginas, como pela linguagem inovadora (para mim) e objetiva (sem objetivo nenhum, aparentemente), mas que me fazia ler e reler cada página incontáveis vezes, por deleite, admiração e uma total surpresa.

Karam mudou meu modo de ver a literatura, logo fui atrás e consegui os incríveis: Fontes Murmurantes e Cebola, ambos compostos da genialidade absurda de Manoel.

Mais tarde, acabei conhecendo a trilogia do absurdo, de Camus, o fabuloso Ionesco, Beckett (Esperando Godot, Fim de partida), mas Karam continua sendo meu preferido.

Manoel carlos Karam

Manoel, por seu filho Bruno:

Meu pai também era escritor, ou será que meu escritor também era pai? Ambos e vice versa, como ele mesmo escreveria…

Meus pais se separaram muito, então só tive convívio com o Karam por mais ou menos dez anos. Mas esse tempo foi maravilhoso! Aprendi muito sobre artes, sobre as pessoas, sobre o mundo e sobre literatura.

Quase sempre bem humorado, seguro e cuidadoso, foi um pai maravilhoso e um escritor sem igual.

Muitas histórias…anedotas…ele inventava piadas, contava para alguém e esperava pra ver quando outra pessoa iria contar a mesma piada para ele novamente.

Acho que uma forma de descrever o Karam é a abertura do livro O Impostor No Baile de Máscaras: “Arranquei do dicionário a palavra paixão. Carrego comigo”.

Bruno, que sempre achou a obra de seu pai única, também afirma ter se tornado músico e fã do cineasta Stanley Kubrick por conta do pai. Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul – SC, mas viveu a maior parte de sua vida em Curitiba – PR. Apreciador das artes em geral, lia diariamente, muita prosa, variando entre clássicos e jovens iniciantes. Dentre seus autores favoritos destacavam-se Cortázar, e alguns autores que segundo ele, encaminharam-no legal:

“Guillermo Cabrera Infante, um cara que mostra as coisas, me ajudou bastante.”

“Georges Perec tem um livro de 300 páginas sem a letra E, a letra mais usada em francês. E um louco de um espanhol ou argentino, traduziu para o espanhol sem a letra A. Então, essas pirações todas, eu acho isso ótimo.”

O livro citado se chama: O sumiço – Este romance do francês Georges Perec é todo escrito sem a letra “e”. O autor cria um mundo de letras, povoado por seres de letras, cujo destino depende também das letras, e, principalmente, do sumiço de uma delas.

Bruno diz que Manoel também tinha interesse pela política mundial, Heineken, viagens para Europa e Buenos Aires (a segunda melhor cidade do mundo para morar depois de Curitiba, segundo seu pai), e gostava de futebol, sendo torcedor do: Coritiba, Vasco, Santos e Real Madrid – desde criança. Dizia: “Gosto de ver futebol na TV pra não pensar muito”. Também nunca deixou de prestigiar o filho músico, principalmente, depois deste fundar uma banda de jazz.

Esse “cataribano”, que afirmava: “Dizem que nós (catarinenses) estamos tomando conta do mundo, mas bem discretamente. Então eu tinha uma missão, tomar Curitiba”. Foi escritor, jornalista, diretor de teatro, e deixou um grande legado de encrencas literárias criadas com muita originalidade, que encrencam uma porrada de leitores e admiradores de sua obra atemporal; um temporal refinado de ideias que se fundem desconexas e se dispersam unidas. Filho de um pai que fazia teatro e era ator, tendo até mesmo escrito algumas peças, Manoel formou seu primeiro grupo teatral na cantina da faculdade. Em suas palavras: “Foi combinado, depois da reunião de uma sexta-feira, que todos levariam seus livros na segunda-feira para escolhermos uma peça a ser encenada. Eu escrevi uma e levei. Como fui o único que chegou com alguma coisa, a minha foi escolhida. O nome da peça era “O velório do Joaquim Silvério dos Reis”, e fez uma bagunça. Matava-se uma galinha em cena, toda noite. Sobre uma maca, um estudante de biologia fazia a cirurgia”. Nesse mesmo grupo, Karam montou outra peça, que tinha como atriz Denise Stoklos e iluminador Cristovão Tezza. “Pra ver o que já aprontamos nessa vida”, Manoel sobre a ocasião.

Manoel Carlos Karam

Sendo jornalista, tinha uma preocupação muito grande, não queria virar um escritor de final de semana: “Quando você tem outra profissão, a tendência é essa, então, ao sair do jornal, ao invés de ir pro bar, eu ia pra casa escrever livros. Comecei a me disciplinar para trabalhar diariamente, e às vezes, não trabalhar em final de semana. Vou contar uma história, um dia uma estudante de jornalismo veio fazer uma entrevista comigo. Eu falei que as duas coisas, Jornalismo e Literatura, são opostas. Em Literatura você inventa, e em Jornalismo não. São duas maneiras diferentes de escrever, são duas linguagens diferentes. A menina ficou meio assim, parou de repente, ficou quieta. Eu perguntei o que foi que ouve? Ela disse, nada, é que eu resolvi fazer Jornalismo porque eu quero escrever poesia. Então eu disse, vai fazer letras. E um cara como eu sou um péssimo exemplo, porque eu faço as duas coisas”.

Manoel, que não dedicava seus livros por medo de dedicar um livro ruim para alguém, tratava sua literatura assim:

“Eu trato da imperfeição humana, imperfeitamente.”

“Você pode contar qualquer história, Romeu e Julieta, por exemplo. O que vale é a forma como você conta esta história.”

“Não ter estilo talvez seja meu estilo”

Karam começava seus textos sem saber onde queria chegar, para ele, não tinha graça nenhuma saber o que aconteceria no final. Às vezes um conto virava romance, ou um romance virava conto. Aconteceu com o livro Encrenca, onde escreveu um conto e não gostou, achou que tinha algo errado com ele, então descobriu o porquê, não era um conto, era um romance. Aconteceu a mesma coisa com “Sujeito Oculto”. Por outro lado, às vezes um texto que achava ser um romance, tornava-se um conto. “Tenho surpresas com as coisas que eu escrevo, não só o leitor, acho ótimo isso”.

Segundo Bruno, seu pai não falava sobre suas obras, e a razão de Karam:

“Um dia, eu tinha acabado de lançar o “Cebola”, aí me perguntaram: Sobre o que é o livro? Falei, olha, se eu pudesse em duas ou três frases resumir o que é o livro, não teria escrito 250 páginas. Mas tem um outro motivo de eu não gostar em falar sobre os livros, porque como eles são livros onde as coisas não são exatamente bem determinadas, quer dizer, permitem uma variada leitura, eu não gosto de induzir o leitor a pensar isso aqui, ou aquilo lá. Sobre o “Sujeito Oculto”, saiu na imprensa que era sobre um matador, quando me perguntaram, eu falei: Não sei. Eu gosto de capas de livros que tenham apenas letras, sem figuras para induzir qualquer coisa. Eu como leitor, gosto de estar livre para interpretar do meu jeito.”

Karam escrevia em Curitiba, para Curitiba e sobre Curitiba. Dizia que tinha bastante coisa da cidade em seus livros: a vida, o jeito, a paisagem, algo sempre mexia com ele, dissolvido, misturado, transformava tudo isso em seu universo karaniano, e está ao lado dos curitibanos Paulo Leminski e Dalton Trevisan, que incorporaram Curitiba em suas obras.

Manoel Carlos Karam

“Karam esteve à frente de toda uma geração e ele — sozinho — foi um movimento literário, um submarino que só agora está emergindo.”

Carlos Henrique Schroeder – romancistaroteiristacrítico literário e editor brasileiro.

“Karam nunca é hermético ou obscuro. Ao contrário. Sua escrita é de uma clareza abusada. Porém, está o tempo inteiro desafiando a imaginação do leitor com jogos aliciantes. Ou seja, exige um leitor com imaginação.”

Marçal Aquino – jornalista, escritor e roteirista de cinema brasileiro.

“Os textos de Karam desprezam a convenção realista e amam a confusão surrealista. Se voltam contra o status quo da literatura brasileira e sua permanência é indecifrável, ‘ao menos por enquanto — talvez para sempre.”

Joca Reiners Terron – poeta, prosador, artista gráfico e editor brasileiro.

Algumas obras:

Comendo bolacha maria no dia de São Nunca

Por Carlos Henrique Schroeder

Vou recomendar o livro que considero a melhor entrada para o universo do Karam, para entender seu jogo: Comendo bolacha maria no dia de São Nunca. São breves recortes que não cabem nos rótulos mais conhecidos, como conto, crônica ou mesmo o aforismo e a dramaturgia, divididas em nove partes completamente díspares. Esses estalos hoje encontram ecos em livros de autores como Lydia Davis e Gonçalo M. Tavares, pela incrível precisão e brevidade, mas com o humor peculiar do Karam, que beira a exasperação. É um livro para ler várias vezes, do início ao fim, ou de trás para frente, não importa. Aqui Karam mostra que sabe jogar e nós somos o tabuleiro.

Encrenca

Por Joca Reiners Terron

Encrenca é o mais ambicioso romance do Karam, ambicioso no sentido de que ali ele tentava escrever um romance fugindo aos esquemas que ele próprio inventou no Cebola, que é um romance em camadas, contos dentro de contos dentro de contos etc. Já o Encrenca tem protagonista e até personagem secundário (o automóvel do protagonista). Também tem ambientação, ação e outras situações dramáticas (não sei se a palavra serve ao caso) terminadas em ão. Enfim, é uma narrativa que faz jus ao termo, ao contrário de outros livros mais fragmentários dele que se apegam ao fraseado, à subversão da lógica e à dissolução do enredo.

Fontes Murmurantes
Por Reginaldo Pujol Filho

Eu, que comecei a lê-lo via Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca Pescoço ladeado por parafusoslivros absolutamente fragmentários, rebeldes com qualquer idéia de gênero, ao começar o Fontes, nas primeiras 30 páginas, razoavelmente acompanhando a narrativa sobre o personagem Campos, mesmo que um personagem em quem não cresce barba e os cabelos se desenvolvam assimetricamente (pra dizer o mínimo de estranheza do universo proposto), ainda assim, dado o contraste com os outros livros já lidos, pensava, Ah, então o Karam antes contava histórias, narrava linearmente. Então veio o narrador e disse “mas os acontecimentos da cela seriam mais bem contados se o próprio Campos fizesse a narração. Sendo assim, coloca-se de lado a terceira pessoa e assume a primeira pessoa do singular de Campos”, e eu Opa. Mas ainda era Campos, ainda era o protagonista. Porém, logo, num impressionante, rápido e leve (como mandaria Calvino) jogo de mudanças de perspectiva, a história sai de Campos e é sugada por um capítulo muito apropriadamente chamado de redemoinho, no qual somos envolvidos por outras narrativas, outras formas, outros personagens, por Karam.

Cebola

Por Joca Reiners Terron

Este livro bulboso, sinto informar, lhe fará chorar. De rir. Dentro daquela taxionomia auto-determinada por Karam em seu quintal repleto de coisas verdes, “Cebola” representa a casa. Olavo B., Ema, Manfredo, Silva-João-da, Gumercindo e os outros estão numa casa-labirinto e vagam por seus cômodos-corredores à espera do Minotauro ou de um incêndio que lhes traga alguma razão. Enquanto isso, discutem, conversam, falam, brigam, argumentam, riem, provocam, perguntam e atiçam a inteligência do leitor como poucos livros da literatura brasileira dos últimos cinquenta anos.

Manoel Carlos Karam sabe que a razão não traz nenhum conforto. E por isso atira a filosofia à rua, devolve-a ao seu lugar de origem, extraindo reflexão do que está aí diante de nós há tanto tempo (o relógio, a cebola, o alfabeto, os números) que já não conseguimos mais vê-los como realmente são. Assim, limpando nossa visão com lágrimas de risos, “Cebola” nos faz ver de novo o mundo como ele realmente é, um lugar onde as certezas não são mais necessárias.

Bruno Karam

Estuda música desde 1990. Professor desde 1994, apesar de se formar em Licenciatura depois, em 1999. Toca e grava profissionalmente desde 1996. De lá para cá, já trabalhou com quase todos os gêneros de música. Bandas baile, música brasileira, rock e jazz. Até banda de karaokê! Trabalhou por 10 anos como compositor e sonoplasta de teatro. Dentre os trabalhos musicais, muitos covers, mas muitos autorais também.

Instagram: @bruno.karam

Bibliografia

http://www.bpp.pr.gov.br/Candido/Pagina/Reportagem-Manoel-Carlos-Karam

rascunho

 

Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site:  www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: Mallarmargens, LiteraturaBr, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, Jornal Plástico Bolha, A Bacana, Cidadão Cultura e Olho Vivo.

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