Cheguei ao Crato, no estado do Ceará, no dia 10 de janeiro deste ano. Vindo pela terceira ou quarta vez por aqui, desta vez vim para ministrar uma oficina de poesia pelo Coletivo Camaradas, no Hostel Kariri. A cidade é um caldeirão cultural, de fato. E pensar que essa metáfora cai melhor do que a referência ao sítio em que o beato José Lourenço fez morada e que hoje se encontra ao Deus dará, pelo menos no que diz respeito às políticas públicas de valorização de comunidades quilombolas e congêneres.

Nesta passagem pelo Cariri busquei ampliar as referências. Além de ministrar essa atividade, participei de outras duas. A primeira, desenvolvida no Kariri das Artes foi a Oficina de bonecas Abayomi com Ânella Fyama. Antes de começarmos a criar nossa boneca, ouvimos atentamente às informações da oficineira sobre a origem das bonecas: para acalentar seus filhos durante as terríveis viagens a bordo dos tumbeiros – navio de pequeno porte que realizava o transporte de escravos entre a África e o Brasil – as mães africanas rasgavam retalhos de suas saias e a partir deles criavam pequenas bonecas, feitas de tranças ou nós, que serviam como amuleto de proteção (FYAMA, s/d).

“Encontro precioso” é a tradução do Iorubá para Abayomi, e sintetiza bem a atitude das mães para com suas filhas. Tem sido precioso para mim o encontro com a cultura caririense. E isso me tem feito voltar ao lugar. Também fiz como ouvinte a Oficina de Cordel com Hamurábi Batista, artista de Juazeiro do Norte que vê na palavra a possibilidade de mudança de um estado para outro, como eu. Batista e filho e pai de cordelista, o que ajuda a manter a tradição e culto dessa iguaria literária, casamento perfeito da poesia com a arte da xilogravura, registrado na sextilha que se segue:

Para saber de onde vem

Ou mesmo quem a domina

Se veio logo de baixo

Ou se chegou lá de cima

Cordel e xilogravura

São mesmo uma obra prima

(BATISTA, 2017, P. 8).

Pelos bares da região central do Crato conheci o ciclista Fernando Cheflera, engenheiro florestal de Brasília que viaja com seu pífano e alguns cordéis pelas estradas brasileiras. Sobre duas rodas ele vai levando sua mensagem (AI SE AVE FOSSE) por onde passa. “Nosso Cordel Estradeiro/Bota o pife pra piar/ Rodamundo passarinho/ Viramundo a pedalar/ No pedal da bicicleta/ O Ciclista que é poeta/ Viramundo vai virar/ (CHEFLERA, s/d, p.1). Fernando autodenomina-se um aprendiz da arte do pífano e viaja levando na mala oficinas de fabricação de pífanos, literatura de cordel, trabalha com identificação ode plantas, plantio agroflorestal, além de apresentações musicais e teatrais.

Em Juazeiro do Norte assisti ao lançamento de Poemas para Maria, coletânea dedicada à memória da beata Maria de Araújo, símbolo da crença religiosa em torno dos milagres de Joaseiro, gênese da religiosidade popular que enfrentou a ortodoxia católica da belle époque sertaneja. A Cícero, o que é de Cícero, à Maria, o que é de seu merecimento, é o mote que busca revalorizar essa figura destronada de seu mérito histórico na história de Juazeiro do Norte. Destaco os dois tercetos de Soneto para Maria, poema que abre a publicação:

Preconceito, discórdia mal oculto,

transformaram mulher forte num vulto

mas história escrevestes, sangue bravo!

És Maria, és Beata, és Araújo.

Representas pro oleiro o “barro sujo”…

A história ergue o rei e não o escravo!

(POETA, 2018, p. 13).

Icó, Orós e Iguatu também se fizeram presente nessa viagem. Impossível não me lembrar das primeiras vezes em que ouvia os LPs de Raimundo Fagner. São muitas as lembranças boas de cada palmo percorrido, incabíveis em uma crônica tão simplória quanto esta. Mas estou de volta nos próximos dias. Outra Oficina de poesia me espera na Comunidade do Gesso. Vamos para o Encontro de Poesia no Gesso, de 8 a 11 de março. Carlos Barros e Junior Baladeira também estarão, o recifense levando seu originalíssimo Buffet de Poesia e o rapper sertanejo com seu cordel deslavado a inundar as batalhas de poesia, os encontros que mesclam poesia, performance e cordel para encanto dos interessados e viajantes do acaso.

O Ceará tem sido muito receptivo às minhas incursões.  Lanço no Gesso meu Gênero, Número, Graal e já inicio a divulgação de Xibio, novo romance, em que São Sebastião, Padre Cícero, Frei Damião, Lampião, Luiz Gonzaga e Patativa do Assaré me auxiliam a transformar em ficção um pouco da poesia sertaneja que registra de maneira marcante o imaginário de um coletivo, camaradas.

Uma mescla supra ideológica de saberes, de sabores, de uma busca incessante pela democratização do conhecimento. Vida longa para todo e qualquer coletivo que se imponha pela clareza das propostas e por uma mudança urgente na maneira de ser, de sentir, de se expressar em qualquer linguagem.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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