Enquanto as pessoas entravam e se acomodavam confortavelmente em suas cadeiras, ela estava deitada, dentro do que parecia uma cela, e repetia como um mantra um trecho de Antígona de Sófocles:
“Convém não esquecer ainda que somos mulheres e, como tais, não podemos lutar contra os homens e, também, que estamos submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso obedecer a suas ordens por mais dolorosas que nos sejam”.
Gota a gota sua voz preenche o espaço.
Parece que a escuto, talvez por isso as palavras somem. A voz emudece. Ela disse tudo. A história da Dora é como a de muitas e muitas mulheres. Uma história silenciada, sufocada entre os travesseiros que abrigam as lembranças dolorosas. E é preciso dizer mais.
São suas lembranças derramadas. Sua memória que corre em todas as direções. A água escorre e com ela toda a narrativa de Dora.
No seu cotidiano de mulher, a professora muda de lugar no ônibus ao perceber a presença próxima de um homem. Mas ali sentada ao seu lado dormia uma moça. Dora se levanta. O homem ocupa o seu lugar. Sem entender como e nem por que ela sabe o que vai acontecer. Ele acomoda a mochila no colo. A moça dorme. Ele coloca a mão por debaixo da sua saia. Dora mesmo sem ver sabe o que acontece. Ela faz o motorista parar o ônibus. A polícia chega. Ela acompanha a moça até a delegacia. O depoimento é sufocante.
Ela passeia pelas próprias memórias. Sem direção ela vai ao encontro de si mesma. Ela cai na água, ela se banha na água, ela bebe a água. O esquife de cristal se quebra. Os contos de fadas são contos de terror, de morte, de violência e opressão às mulheres. Dora lembra. E recolhe todos os seus pedaços quebrados. Recolhe todas aquelas peças perdidas que a feriam sem que soubesse, afundadas nos recônditos da memória, cravadas no inconsciente.
Ela também dormia. A sua história como a de muitas e muitas mulheres. Mulheres que são assassinadas, abusadas, que tem suas vidas roubadas, seus sonhos despedaçados, estupradas, violentadas, silenciadas, oprimidas, apagadas, esquecidas, rejeitadas. As histórias nem sempre são como nos foram contadas. Memória e palavra se confundem.
Mas o esquife de cristal já se quebrou.
Ela se liberta de todas as violências, opressões, dores, traumas, cicatrizes. Ela pega o seu destino com as próprias mãos. E vai a luta com as armas que dispõe, com a potência de narrar a própria história.
Sangramos todos os meses para dar luz à vida. Mas em vida, lutamos contra a escuridão. Contra os passos que nos perseguem no escuro, contra os caçadores que todas as mulheres encontram e enfrentam em suas vidas. E é preciso quebrar o vidro, o esquife de cristal. Encontrar uma voz para que estas histórias sejam contadas, para que meninas, crianças, mulheres não sofram a perpetuação destas violências normalizadas em nossos cotidianos.
Todas estas questões foram colocadas em debate realizado pelo TeatroJornal que teve participação da diretora Eliana Monteiro, da atriz Lucienne Guedes e da autora do texto, Carol Pitzer. A peça segue em exibição até 22 de outubro no Mezanino do Centro Cultural Fiesp.
E desta conversa após a peça, a reafirmação da certeza de que este é o momento de mudarmos esta cultura. Temos que lutar por uma sociedade que não nos violente por sermos mulheres, não nos assassine, não nos silencie. A nossa história só nós podemos contar.