Era uma rua erma, que terminava num beco sem saída. Ladeada de Oitis frondosos parecia imagem de sonho. Alice morava na quinta casa à direita, número 542. O grande portão gradeado vivia fechado, escorado ao velho muro coberto de eras e musgos colados à superfície úmida e porosa do reboco. Raramente se via um ou outro morador aparecer nas calçadas sempre cobertas de folhas secas. Um eterno abandono vicejava pelos cantos, em meio ás raízes superficiais das árvores, aparentemente as únicas criaturas vivas por ali.

Laboriosa e gentil, Alice vivia das vendas de deliciosas tortas salgadas feitas  todo santo dia no maior capricho. Pequena e roliça, com as faces coradas de pura saúde, a moça tinha um sorriso gracioso, cabelos castanhos e cacheados, cortados à altura dos ombros, olhos verdes escuros, pequenas mãos delicadas e uma simpatia a prova de qualquer mal humor. Acordava muito cedo para esticar a massa preparada na noite anterior. O cheiro do assado provocava cócegas no paladar e água na boca. Seus quitutes eram famosos e Alice tinha boa e sólida clientela nos shoppings, em grandes escolas, bares e residências. Só não vendia em sua rua porque os vizinhos estavam sempre trancados dentro de casa, talvez por serem de idade avançada ou mesmo por falta de animo. Mas isso não importava, a moça era feliz na companhia dos seus lindos gatos, que eram muitos e a família estava sempre aumentando, já que Alice tinha o costume de recolher gatinhos abandonados nas ruas da cidade.

O vizinho da casa ao lado era um sujeito sisudo e mal humorado, de pele pálida e grossas sobrancelhas negras. O médico lhe recomendara uma dieta de baixas calorias e nada de carboidratos, portanto o aroma delicioso das tortas e pães era uma verdadeira tortura para ele. Todas as manhãs seu Sebastião sofria com o desejo imperioso de comer os maravilhosos pãezinhos recheados, mas tinha de contentar-se com a magra dieta que o médico prescrevera. Era um alívio quando Alice finalmente saía para a rua e com ela ia-se o cheiro dos deliciosos salgados.

Como a dieta deveria durar alguns meses, o pobre homem pensava num jeito de escapar da tortura. Fechava as janelas e mesmo assim o aroma sutil entrava pelas frinchas mais ínfimas e espalhava-se no ambiente, provocando aquela vontade irresistível de comer um pãozinho, só unzinho, que ninguém é de ferro, afinal de contas era praticamente impossível fugir à tentação. Para esquecer a vontade louca de comer pãezinhos, seu Sebastião saiu para dar uma volta, caminhar, espairecer. Andou por vários quarteirões respirando a brisa fresca da manhã daquele novembro tépido e chuvoso. Sentou-se na praça observando as crianças que brincavam por ali,  felizes, entregues a despreocupação própria da infância. Por volta das nove e meia resolveu voltar. Com certeza a moça dos pães já havia saído.

Ao chegar à rua de casa, viu que Alice estava tirando o furgão da garagem. Cautelosa ao volante, ela parou para que seu Sebastião atravessasse com segurança, e ele vendo que a moça era gentil, atreveu-se a comprar meia dúzia de pãezinhos recheados que devorou avidamente, com gula, escondido de si mesmo. Quarenta minutos depois estava a caminho do médico sentindo todos os sintomas da alta taxa de glicose. Levou um sermão daqueles e depois de ser medicado voltou para casa com a ordem expressa de não ingerir nenhum tipo de farináceo, frito ou assado.

“Ordens são ordens”, pensava ele com água na boca ao sentir o delicioso aroma dos assados enquanto tomava seu suco de couve. Ao sair para fazer sua caminhada, evitava o mesmo horário de Alice para não correr o risco de cair novamente em tentação. Mas um dia o cheiro estava por demais divino e ele não resistiu. Foi até a casa da moça e comprou um salgado, apenas um para matar a vontade que o consumia. Comeu devagar, aos bocadinhos, sentindo a textura macia da massa fresca e o sabor do delicioso recheio de lombinho. Porém, não foi o suficiente para satisfazer a gula, e Sebastião movido pelo desejo de comer só mais unzinho voltou a bater na porta de Alice. No entanto ela já havia saído para as vendas. Foi então que ele fez uma coisa que nunca se atrevera antes: saltou o muro dos fundos, que dava para a cozinha e passou a vasculhar armários e fornos a procura de mais um pãozinho.

Sebastião estava tão envolvido na busca que levou um susto enorme ao se deparar com mais de vinte gatinhos que cochilavam preguiçosamente sob a grande mesa de aço. Imediatamente uma terrível suspeita tomou forma na sua imaginação; os deliciosos salgados eram feitos com carne de gato! Que horror! Sentiu-se acometido de náuseas pensando na gula com que devorara os pãezinhos que quase o levaram a morte e agora mais outro que tentou a força vomitar, o que não conseguiu. Apavorado, correu para a clínica e lá insistiu para que lhe fizessem uma lavagem estomacal. O médico ficou cismado, seu Sebastião era um paciente complicado,   mas aquilo já estava passando dos limites.

Dentro do consultório, a portas fechadas, Sebastião contou ao médico os fatos recentes, e este o repreendeu pela invasão de domicílio, afinal, naquela idade, pulando muros para roubar salgados, francamente! Sem considerar que era crime!  Já a suspeita de que a moça usava carne de gato na confecção dos salgados era caso de polícia, ela devia sim ser investigada o quanto antes. Dessa forma, poucas horas depois, Sebastião saiu da delegacia com a alma lavada, certo de ter agido como bom cidadão. Ao cruzar com Alice no final da tarde, ele a olhou com desdém, coisa que ela estranhou, uma vez que haviam ficado amigos, mas fazer o que? Seu vizinho era esquisito mesmo, não havia dúvida de que o sujeito não batia bem.

Na manhã seguinte a moça estava retirando os salgados do forno quando a campainha tocou e ela pensou,“deve ser o seu Sebastião.” Ao abrir a porta lá estava o próprio, acompanhado de dois policiais e um fiscal da vigilância sanitária. Entraram na cozinha de modo arrogante, farejando o ar como sabujos, inspecionando tudo, de cabo a rabo, até darem de cara com os gatos. Mais de vinte gatinhos correndo entre os arbustos do quintal. ”A senhora cria gatos com intuito de que? Perguntou o policial gordo, com um tom de voz desagradável e grosseiro. “São excelentes animais de companhia” disse ela encarando o policial, “o senhor está sugerindo o que, exatamente?“. O policial desviou o olhar envergonhado, pegou um dos salgados sobre a mesa, colocou-o inteiro dentro da boca e mastigando  prazerosamente, sentenciou: “Irresistível! É sem dúvida o melhor salgado de carne de gato que já experimentei!”

 

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