Demoraria muitos anos para que a casa de Anna e Hans, que havia sido de Olga e Hubert, que antes havia pertencido a Pepe e Frieda, que havia sido construída pelas mãos e ordens de Wilhelm, o alemão, demoraria muitos anos para que a casa de toda essa gente recebesse um televisor preto e branco (LABES, 2019, p. 143).
Quando nos referimos a determinado romance como histórico, talvez queiramos dizer que trata de um registro datado historicamente, inscrito em determinado tempo e espaço; mas também podemos observar tal inscrição em uma classificação diferenciada, como no caso a de um Novo Romance Histórico, em que há uma releitura do rótulo anterior adequado a um tempo pós-estados nacionais em que não se percebe mais uma adjetivação coerente com os princípios estabelecidos por Lucáks, por exemplo.
Até que se esbarre com o pensamento de Linda Hutcheon que define o conjunto de obras que se debruça sobre um tempo histórico proporcionando outro olhar sobre o objeto, sob o nome de Metaficção historiográfica. Este conceito mais plugado à condição pós-moderna, colocada sobre a mesa há algum tempo. Mas a auto ficção, de maneira geral, os romances ensaísticos, em especial e, sobretudo, as narrativas de caráter memorialista impõem-se de maneira imperativa para segmentar ainda mais esse debate.
Não se trata de uma epistemologia distinta, já que devemos pensar de maneira a valorizar o que seja predominante no projeto da escrita, na arquitetura do texto. A provocação trazida no título desta crônica busca promover uma reflexão acerca da natureza cultural que embasa o universo criativo do romancista, aliada a uma preocupação estética de cunho biográfico (falo de um imaginário coletivo alemão) como pano de fundo para reflexões acerca de um tempo histórico alicerçado pela imigração que, no sul do Brasil, acentua-se a partir do ano de 1825, no que hoje se chama de Rio Grande do Sul.
A linha do tempo costura quatro gerações de colonos que atravessam episódios da construção da identidade nacional brasileira, desde a Guerra do Paraguai, passando pela primeira grande guerra, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial, o golpe de estado de 1964, o processo de redemocratização, a partir das diretas já, para que possamos envelhecer junto aos descendentes dos primeiros colonos alemães em território catarinense.
Com o foco certeiro para os períodos de exceção, Labes aproxima o leitor de afirmações importantes e caracterizadoras do perigo iminente que cerca as gerações que se sobrepõem: “Uma mulher que não sabia mais poupar as palavras, uma pessoa que de uma hora pra outra deixa de medir com cuidado o que diz é sempre um perigo” (idem, p. 87).
A orelha, redigida de maneira emblemática por Carlos Henrique Schroeder, é certeira quanto a isso. O universo ficcional do romance passa pelo testemunho e pelo uso da analogia das relações que envolvem servidão e poder, conceitos que propiciam este mergulho no imaginário trágico das culturas brasileira, alemã e paraguaia no que diz respeito ao espólio pós 1870. “Olga já havia dito a Hans, anos depois, repetiu a assombrosa sentença: dizia que o único fim esperado para os eram a loucura e a morte” (p. 161).
Gosto de pensar que a epígrafe poderia ter aberto o livro, como frases iniciais, antes de dizer que “Paraízo é um bairro, quase um distrito, ou um gueto, se assim preferir,…” (idem, p. 9). Gosto de pensar que a obra poderia terminar à página 165, ao invés de avançar por mais um capítulo e outras quatro páginas. Por que digo isso? Não há nada mais belo no romance (pelo menos para mim) do que a sequência: “A vida, Martha sabia, era o que acontecia entre as palavras. Quanta vida havia naquela casa vazia” (p. 165).
o Weser
o Ems
e o Elba
deságuam no
Mar do Norte
Já o Itajaí-Açu
que atravessa
território xokleng
não avisa a quem vem
que o Mar do Norte
ficou para trás
há muitas milhas
náuticas.
(LABES, 2018, P. 17).
REFERÊNCIAS
LABES, Marcelo. Enclave. São Paulo: Patuá, 2018.
paraízo-paraguay. Florianópolis: Caiaponte, 2019.