Os caminhos da poesia são tortuosos, é bem verdade; e rabiscam no outro sensações profundas. Da oralidade primitiva, à escrita temporária, inscrições regidas pelo intelecto ou pelo emocional circunscrevem temporalidades verbo afora, corpo adentro. O uso da língua, em sua plenitude, complexo de Electra, sendo materna, faz do usuário um pecador. Pecar por excesso, com a boca cheia de palavras, pecar pela falta de papel para compor. Alexandre Brito em seu ABC faz fita com a palavra certa, brinca com os signos do erotismo.
A figura estereotipada de Eros na poesia alexandrina chega ao Ocidente por intermédio da poesia bizantina e latina. Chamado daí por diante de Amor ou Cupido (seu nome latino), o deus se adapta, entretanto, à inspiração das épocas e dos autores, tornando-se objeto de interpretações originais. (LÉVY, 2015, p. 322).
de onde vem esse gosto de vulva em minha língua
essa fala, cheiro de uva que a chuva empresta à vinha
aroma de eros que a letra exala, este fato
gozo de favo a festa que se derrama enquanto falo
(BRITO, 2017, p. 131).
A sonoridade é imperativa para a análise do poema. Os versos são brancos e irregulares. Mesmo que a métrica seja dispensável para a análise, observa-se que o ritmo é de cadência sensível. Cada verso se desalinha em relação ao anterior e o seguinte. Todos iniciados por letras minúsculas, o que sugere continuidade de ação. Os verbos utilizados são: vem (primeiro verso), empresta (segundo verso), exala (terceiro verso) e (gozo, derrama / falo) no último, todos no tempo presente, o que sugere aproximação. O eu-lírico dá um tratamento de sensualidade ao objeto. Os cinco sentidos estão representados: gosto – paladar; língua – tato; fala – audição; cheiro – olfato; chuva – audição e visão.
A presença de figuras sonoras, sobretudo a aliteração e a assonância, traz para o plano semântico a força da oralidade. A sugestão do movimento entre corpos, o enlace, é sugerida pela figuração do zeugma, figura de construção que corresponde às ligações sintáticas entre os sentidos, o que reforça o caráter erótico da construção. As cesuras em cada verso ocorrem em sílabas diferentes. No primeiro, na décima, no segundo, décima primeira, no terceiro, oitava e no último, décima segunda. Cada uma delas vem marcada no significante por fusão sonora de vogais, denominadas de elisões do tipo sinalefa (vogais diferentes), a saber: vulva em (verso 1); chuva em (verso 2); letra exala (verso 3); derrama enquanto (verso 4). Observa-se ainda que os três últimos versos sugerem movimentos de dentro para fora (chuva, exala e derrama), ao passo que o primeiro é para dentro: “em minha língua”.
O encadeamento proporcionado pela ação das omissões propõe ligação intestina entre as orações. Parece ordenar duas questões, de imediato: 1) de onde vem esse gosto de vulva em minha língua; 2) de onde vem essa fala, que corresponde a outros dois fragmentos do poema: a) “cheio de uva que a chuva empresta à vinha”; b) “aroma de eros que a letra exala. Mas exala exatamente o que? : “gozo de fato a festa que se derrama enquanto falo”. As ações são crescentes, o que se observa pela presença dos verbos: um em cada um dos três primeiros versos e três no último, como que enfeixando as ações anteriores.
Há certa ambiguidade morfológica no uso de dois dos três verbos do último verso: gozo e falo. Podem ser verbos, como substantivos. O ato de gozar, ou o produto do gozo, a grafia é a mesma. O ato de falar, ou o próprio falo. As paronomásias dão tratamento interno para as costuras, quer seja com esse, essa, este, empresta/festa; quer seja com vulva, uva e chuva.
meu bem
se você sabia que não poderia
por que ante pôs-grafia
na saliva da minha língua?
(MARTINS, 2018, p. 39).
É curioso o silêncio imposto pela distância do discurso, em relação à invocação, que dá título ao texto. Os três versos que seguem o vazio são introduzidos por um elemento condicionamento, que deixam claras as indicações de causa e efeito. Um único período dividido em três versos compõe o poema. A tônica central é o fonema / i /, presente nas rimas internas do primeiro verso (sabia e poderia), na última sílaba fônica do segundo (grafia) e também em três do terceiro verso (saliva, minha, língua). Há contrastes no ambiente conotativo, quanto no denotativo do enunciado poético. Se a língua de que se fala é o repositório linguístico, o contraste é entre fala (saliva) e escrita (grafia); mas se a língua é (metonimicamente) parte do corpo humano, esse “não poderia”, sendo um interdito, deveria ser acompanhado de uma recusa, não consentimento.
Ao observar detidamente a divisão silábica de todo o poema, encontra-se mais ou menos no meio da divisão a decomposição da palavra antepor, flexionada para ante pôs, em que a primeira parte (ante) transforma-se em preposição, e a outra parte, em verbo. A saliva da língua pode se referir ao tempero, à linguagem do eu-lírico, anteposta ao crivo de outro. A grafia na língua do outro toma corpo crítico no fazer, implica juízo de valor, aspectos corretivos.
Os tempos verbais arrematam a análise; os dois verbos do primeiro verso estão conjugados no pretérito imperfeito, o que referenda ações incompletas: sabia e poderia, ao passo que o do segundo verso: pôr, desmembrado da preposição vem para o presente. Depois de um condicionamento, uma insuspeição. O que começa com o condicionamento, termina com a interrogação: Pode?!
REFERÊNCIAS
BRITO, Alexandre. Cine ABC. São Paulo: Patuá, 2017.
LÉVY, Ann Débora. Eros. In: Dicionário de Mitos Literários. 4. ed. BRUNEL, Pierre (org.) Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
MARTINS, Penélope. Que culpa é essa? São Paulo: Patuá, 2018.