Por Ramon Carlos*
Estava em apuros. Por onde olhava via formigas, elas caminhavam por toda quitinete, e o pior, eram todas iguais, portanto tinha que odiá-las igualmente, se matasse uma, teria que matar todas, nada de privilégios. Um grande grupo circulava por cima da pia da cozinha, esperavam a “casca” do pedaço de salame diário ser jogada lá, para adiante carregarem com dificuldade, pra onde não sei, mas levavam. Já o grupo que cuidava do chão da cozinha esperava farelos, de qualquer coisa. Elas me conheciam a esse ponto. Sabiam tanto sobre mim que jamais arriscavam entrar no banheiro. Grande erro, pois era lá que traçava o plano de exterminá-las. Primeiramente, pra ter certeza que meu cativeiro estaria longe de espiãs, comia uma fatia de pão com salame, interpretando uma farta refeição na mesa, sem vestígios de genocídio próximo. Quando a “casca” em cima da pia movia-se discretamente, “sem querer” empurrava farelos de pão da mesa pro chão. Então, seguindo com o teatro abria a porta da geladeira e tomava um copo de água, com os olhos fixos nos farelos, que logo se moviam discretamente também. Só nesse momento entrava no banheiro e sentava no vaso. Era difícil ter uma contagem exata, por isso fixei o número em um bilhão de formigas, todas com o mesmo tamanho 8 milímetros, nascidas no mesmo dia. Criei três perfis:
Formigas da pia: astutas, persistentes, pacientes, famintas e organizadas. Nunca andam sozinhas, estão sempre acompanhadas de duas ou mais amigas. Sua comida predileta é “casca” de salame. Detestam fumaça de cigarro, bagaço de limão e respingos d’água da torneira. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora e mínima 2 quilômetros por hora.
Formigas do chão da cozinha: egoístas, desorganizadas, prepotentes e desequilibradas. Não gostam de companhia, carregam seu próprio pedaço de pão e se for preciso morrem por ele. Além de farelos, demonstram interesse em açúcar, gotas de suco de limão e raras se arriscam na cerveja preta. Abominam chulé e gordura. Velocidade máxima 9 quilômetros por hora e mínima 3 quilômetros por hora.
Formigas do quarto: alegres, receptivas e sonhadoras. Geralmente nem sabem onde estão, nem com quem, mas isso nunca parece ser problema. Sem preocupações na vida, comem o que aparece, desde insetos mortos até migalhas de bolacha recheada. Se coçam por uma cervejinha e cinzas de cigarros. Ainda não descobri o que execram. Velocidade máxima 10 quilômetros por hora sem beber, e mínima 4 quilômetros por hora sem beber. Ponto relevante: quando bebem muito, permanecem no mesmo lugar por horas.
A partir destas constatações, meu primeiro plano foi confundir os grupos, criar um caos generalizado na casa, gerar conflitos de satisfações íntimas ou grupais. Testei a seguinte solução: largar a “casca” de salame no quarto, farelos de pão sobre a pia e derramar cerveja no chão da cozinha. O que aconteceu:
Formigas da pia: reuniram todos os farelos em um só monte, fizeram uma breve contagem percentual, e em círculos andaram todas a 7 quilômetros por hora, realizando um ritual de agradecimento aos seus deuses. Sem demora, quatro formigas apareceram carregando um pedaço de “casca” de salame, não sei de onde, e se alimentaram ali mesmo, uma refeição completa.
Formigas do chão da cozinha: Houve troca de empurrões e pisoteamento por cada gole da cerveja. Aquelas raras da cerveja preta aguentaram mais trago, as outras saíram rastejando e vomitaram nos pés da mesa. Somente um grupo de dez formigas negou-se a beber, mas quando notaram o fim da cerveja brigaram entre si para saber de quem tinha sido a ideia idiota de não beber.
Formigas do quarto: não perceberam a “casca” de salame. A única muvuca ocorreu quando uma formiga de ressaca caiu de cima do guarda-roupa. Boatos sobre tentativa de suicídio se espalharam, promovendo uma rápida passeata perto do ventilador por direitos formigais, porém a própria formiga que caiu acabou contando os verdadeiros motivos do tombo. Pra não passarem por bobas, as formigas da passeata aceleraram para 10 quilômetros por hora, exigindo mais insetos mortos, cerveja cara e cinzas de cigarros brandas. No fim da noite organizaram uma suruba de confraternização.
Sem sucesso, tive que voltar para o sanitário e pensar um novo plano. Em minha mente, ainda permaneci com a ideia de caos e guerra entre elas para o extermínio total. O que resolvi fazer foi o seguinte: capturar três formigas, uma de cada grupo e deslocá-las para outro território, assim, proporcionaria divergências de opiniões e atitudes, quem sabe até um assassinato brutal, isso seria capaz de gerar nocividade, e por fim, o holocausto tão desejado por mim. Uma formiga do quarto introduzi no grupo do chão da cozinha, uma formiga do chão da cozinha foi pra pia e uma da pia foi pro quarto. Eis o que se sucedeu:
Formigas da pia: estranharam a presença de uma individualista. Se dirigiram em grupo ao encontro para saber quem era, e afinal, o que acontecia com ela. A egoísta evitou cerimônias, dizendo não saber o porque de estar ali, e afirmou que o egoísmo era a cura pra qualquer loucura. As formigas da pia, por sua vez, sabiam o que fazer. Carregaram a formiga do chão nas costas e lhe ofereceram uma farta refeição com farelos e “casca” de salame. Dançaram pra ela, lavaram suas antenas, e por fim, lhe deram um cargo importante entre elas. Foi inevitável a aceitação.
Formigas do chão da cozinha: se perguntavam intimamente quem era aquela formiga correndo pelada e batendo a cabeça na parede. Sentiram, todas, uma imensa vontade de imitá-la, mas tinham vergonha, vergonha dos risos, por isso contentaram-se observando. Essa pelada correndo a 12 quilômetros por hora (tinha bebido), para se enturmar resolveu promover uma suruba. Acontece que todas formigas brocharam perante a pressão imposta. Percebendo aquilo, a impostora que agora estava no chão da cozinha resolveu voltar pro quarto, mas acabou se perdendo e entrou no banheiro, onde morreu por asfixia. No laudo consta overdose. Heroína.
Formigas do quarto: acordaram com ordens e gritos da formiga da pia, “Vamos acordar”, “Está na hora”, “O que temos pra hoje?”, “Casca ou farelo?”. Sem ligar praquilo, todas se dirigiram ao cinzeiro e às garrafas de cerveja. Fiquei só observando. Como as ordens não paravam, uma sugeriu “Que tal uma suruba pra acordar?”. E todas foram pro canto do quarto, inclusive a da pia, que acabou se apaixonando no meio daquilo tudo. Sentimental demais.
Sentado no vaso resolvi apelar pra crueldade. Estava em apuros mesmo. Despertei no meio da madrugada pra matar uma formiga de cada grupo e deixar a cena com evidências claras de assassinato por alguma facção rival. Finalmente a rebelião iria começar. No quarto não foi difícil, sempre tinha uma quase morta por perto. Dei uma chinelada nas ancas, ela dobrou-se toda, estava morta. Como pista, deixei resquícios de “casca” de salame ao redor do corpo simulando um possível latrocínio. Sobre a pia, um pequeno grupo de cinco perambulava observando a escuridão e sentindo a brisa. Esperei pra ver se ao menos uma se dispersava da turma, o que não aconteceu, por isso, só por isso, com duas chineladas matei todas. Após, arranquei pernas e antenas de todas, sugerindo uma chacina seguida de esquartejamento. Para parecer serviço de outro grupo, deixei rastros de cerveja preta contínuos. As da pia não bebiam bebidas alcoólicas. Perfeito. No chão, achar uma formiga andando sozinha foi a coisa mais fácil. Derramei álcool sobre ela e acendi com um fósforo. Como eu sabia que dificilmente aquelas egoístas iriam ligar pra formiga carbonizada, saí pela porta da quitinete e fui procurar uma formiga menor, com no máximo 2 milímetros. Queimei-a da mesma forma e pus os restos mortais ao lado da anterior. Matar uma mãe e sua filha tostadas teria que despertar revolta. Como prova fiz um caminho de cerveja, dos corpos até o quarto. Reações:
Formigas da pia: chocaram-se ao ver a cena, teve até tentativa de ressuscitação em vão. Organizaram uma missa dentro de um prato, gritaram por justiça divina, e concordaram em passar um dia sem comer para demonstrar o luto. No dia seguinte deixaram cinco pedaços de “casca” de salame onde as mortas foram encontradas.
Formigas do chão da cozinha: trafegaram normalmente ao redor dos corpos, até que duas formigas passaram por perto ao mesmo tempo e começaram brigar pelo pedaço maior de farelo do pão torrado. A vencedora levou a mãe, a perdedora contentou-se com a filha.
Formigas do quarto: praticaram necrofilia por horas. Quando perceberam que havia um óbito, partiram para uma passeata, reivindicando melhor sinalização no azulejo.
Diante das consequências, tomei outra decisão. Chega de caos. Usaria veneno. Uma seringa com líquido transparente. Resultado:
Formigas da pia: mortas.
Formigas do chão da cozinha: mortas.
Formigas do quarto: mortas.
Eu: relatei os acontecimentos e fui promovido para o próximo verão.
Ramon Carlos (Santa Catarina, 1986). Escreve no site: www.estrAbismo.net. Sua carreira literária resume-se a dois contos publicados em uma antologia, além de materiais diversos em revistas como: Mallarmargens, InComunidade, LiteraLivre, Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura e Jornal Plástico Bolha.