Tenho ouvido falar pelos propagadores do cânone que Machado de Assis é, verdadeiramente, nosso primeiro escritor modernista. Na mesma vertente epistemológica, afirma-se ser Nietzsche o primeiro filósofo da Modernidade. O mais importante nessas duas assertivas é a coerência que permeia tal costura. Em tempos de crises e quebras de paradigmas, debruçar-se sobre questões relativas à condição humana são louváveis. É tanto fast-food eprêt-à-porter que um pouco de reflexividade só pode fazer bem.
Não temos tido tempo para falar sobre coisas importantes em nosso cotidiano; em valorar aspectos que nos dignificam e engrandecem o espírito, ampliam o conhecimento, trazem a fraternidade para mais perto. Nada sei da Genealogia da Moral. Mas é preciso buscar referências em gestos antepassados para se compreender o mundo atual? É uma tônica epistemológica convincente, tal iniciativa, o que te parece?
Os filólogos vêm com sua busca edênica de encontrar os parentes mais distantes de cada verbete travestido de palavra; e muitas delas são fundadoras do próprio ato de se buscar tal compreensão. Há genealogia de palavras, de famílias, de linhagens e por aí vai. A própria representação da árvore para se compreender os troncos familiares e a capilaridade das relações conjugais e extraconjugais é material sobre o qual já se debruçou muita gente boa neste mundo de meu Deus. A árvore com seu tronco, caule, troncos, galhos, folhas e flores; por fim os frutos, e as próprias sementes num moto-contínuo e seus fluxos e refluxos de tempo e espaço.
Estou em viagem. Acompanho a conversa de meu pai, com 87 anos e um tio, com 82. O diálogo, entrecortado por silêncios profundos, é quase monocórdico; mas repleto de amorosidade. O silêncio se faz com uma profundidade que emociona. Percebo os olhares varrendo do tempo os distanciamentos e produzindo sentidos por outras manifestações da condição humana. É uma espécie de Corinthians X Palmeiras em caráter de amistoso, sem as brigas da geral, os xingamentos da torcida uniformizada, as cartolagens obrigatórias do empreendimento futebolístico. Isso tudo me faz pensar na unidade familiar. Estamos em Araraquara, interior de São Paulo, onde moramos em 1977, há distantes (ou nem tanto) 39 anos. Um de meus primos me confessa ver de vez em quando uma antiga paquerinha dos meus saudosos 15 anos, quase a idade de minha filha. Lembramos dela, do fenotípico rosto com a testa encoberta por uma franja que me assalta a memória, depois de tanto tempo.
Desde sempre foi hábito em minha casa tomarmos chá mate gelado, com ou sem limão. Sucos naturais também constavam do cardápio, mas havia um que me despertava a curiosidade: caju. Cresci com a ideia de que era coisa somente do Nordeste, do Ceará, especificamente. Imaginem a surpresa ao mudar para Mato Grosso e descobrir que no cerrado tal fruta é abundante; que esperamos ansiosamente pela chuva que, no mês de setembro, anuncia a chegada de mais uma safra.
Tenho ido muito a Recife nos últimos dois anos e percebo que lá o caju está presente em boa parte do ano. Parece ser um pouco diferente, de coloração distinta e tamanho menor que os nossos, mas nem por isso menos saborosa. Este ano não teremos em casa esse prazer, pois em função da poda necessária, creio que o caule se ressentiu e não deva se manifestar além da floração interrompida.
Como escritor, apego-me à ideia de que há árvores importantes em nossa vida. Dom Aquino Correia tinha a sua, está lá no espaço que leva seu nome à Avenida Beira-Rio, aqui em Cuiabá. Em 2015 fui a Sapé-PB e visitei o tamarindeiro de Augusto dos Anjos, maravilhoso exemplar centenário. Rubem Braga, então, criou um pomar em sua cobertura de Ipanema. Até água de côco era servida in natura a seus ilustres visitantes.
O autor de “Senhor dos Anéis” e outros clássicos da literatura universal, Tolkien, também cultua esse prazer. Sua árvore é um pinheiro-larício, típico da região mediterrânea e plantado no Jardim Botânico da Universidade de Oxford, Inglaterra, espaço mágico que inspirou a Lewis Carrol, por exemplo, na criação de Alice no país das Maravilhas.
José de Mesquita, autor de inúmeras obras que estudei para defender a dissertação Rica/bendita; pobre/mal-dita: as cores da mulher em José de Mesquita (1919-1961), no Programa de Pós Graduação em História da UFMT em 2005, escreveu uma obra intitulada Genealogia Mato-grossense, que em um mesmo volume traz um Nobiliário Mato-grossense, em que descortina a constituição familiar de nobres no Mato Grosso. Mesquita, eterno presidente da Academia Mato-grossense de Letras, desde o Centro de Letras criado em 1921, até seu falecimento, em 1961, também se referiu a elementos da natureza em muitos de seus poemas. Um deles considero especial. Faz parte de seu primeiro livro de poemas intitulado Poesias, de 1919 (comprei no estante virtual há alguns anos), e chama-se Outono. Destaco um fragmento abaixo:
Lembro-me a tarde assim, sem um enfeite,
Linda e casta, uma cândida donzela
Que encanta a quem o olhar sobre ela deste
(…)
Na paisagem dormente que de baços
Tons de luar se veste, enquanto longe,
Arvores movem lentamente os braços
(…)
(MESQUITA, 1919)
A língua abarca uma infinidade de emoções. Marcos Bagno, uma das referências da Sociolinguística no Brasil, também é ficcionista. Além de A Língua de Eulália, leitura obrigatória para alunos de Letras, escreveu outras consideradas de ficção, como por exemplo, o curiosíssimo Mirabiglia, livro de contos. Conheci essa obra através de Marta Cocco que me emprestou e um dos contos me interessou bastante. Trata-se do ADIVETROM, que tenho vez por outra trabalhado em minhas salas de aula.
Trata-se, na verdade de uma árvore que existia em uma localidade e que produzia frutos bons e ruins, mas ninguém sabia qual dos galhos era o responsável pelos venenosos, qual o dos bons frutos. Um dia, um passante, sem saber da história, comeu um fruto e veio a óbito. Todos correram para provar os do outro lado, pois finalmente descobriram qual era o venenoso. Um dos moradores, no afã de acabar com o problema, decepou o galho do mal, gerando o falecimento da árvore. Ficaram sem os frutos, agora também sem a sombra da árvore.
Em O Tempo e o Vento, a cidade de Santa Fé cresce à sombra da velha figueira que perpetua a saga dos Terra-Cambará no embate contra os Amaral. Ricardo Guilherme Dicke nos embota a visão com sua figueira-mãe em Raizama, MT. As raízes de qualquer história são o que nos prendem, senão à terra que nos pariu, ao menos ao que nos tira o chão quando não sabemos para onde ir. Talvez o melhor lugar do mundo seja o estar em algum lugar junto aos seus: pais, filhos, ou mesmo livros, a extensão da sua memória, não importa como ela se manifeste. É possível se ter muita pena de quem não tem do que se lembrar.
*Luiz Renato de Souza Pinto, é professor, escritor, poeta, ator e botafoguense,
com ou sem estrela.