Por Santiago Santos*

eunóia é a obra literária mais experimental já produzida em solo cuiabano. É um jorro transgressor, punk-poético, recheado de referências culturais (expandindo a prosa-vitrine* que Dicke utilizava para dar carne a suas histórias) e neologismos, numa orgia gozosa com as palavras que Eduardo Ferreira manipula com autoridade. É um livro aliterativo e musicado, em flerte com a poesia e o ensaio, mas cuja linha-guia é uma prosa fragmentada, de frases sem uma única maiúscula, de vírgulas sacrificadas e de econômicos pontos finais. O leitor é levado em um frenesi que não tem começo nem fim categóricos, mesmo porque não há uma estrutura reinante.

O enredo-chão, de onde saem as esporas que frutificam (esquecido em certos momentos para reaparecer quando as divagações perigam ficar distantes demais), pode ser resumido sem muita moagem: um escritor noiado, preso em seu cubículo de metro e meio nos fundos de casa, alucina e observa o que se passa além da porta pelo olho mágico (não há enfrentamento efetivo com o mundo, todo mediado por lembranças do subterrâneo cuiabano: os ensaios de banda em ambientes claustrofóbicos, os palcos dos bares, as ruas da cidade, o calor sufocante dos becos). O relacionamento com a esposa é vazio; ela habita os outros cômodos, faz feira, vê novela, vive sua vida e nunca o encontra. Ele parece escrever justamente pra enfrentar essa sociopatia ou depressão ou simples noia paranoica do que há lá fora, do que paira sobre as pessoas em suas rotinas petrificadas. Todo o resto é colado nesse ponto estático, em investigações de toda sorte que voam alto ou baixo e retornam à mesma fonte pra alçar novos voos. A pegada do livro fica bem visível nesse trecho: “trocadilhesco trovador trovejando por aí nas barbas do outono. subtraio palavras dessa onda sem novidade alguma da escrita livre como um fluxo menstrual com dor de parto ou aborto eletrônico onde os nus saíram correndo com o lobo amauri wolf pelos microcontos da vida. explico um conto pequeno. dois contos de réis. quero o nonsense quero a borrasca quero a tempestade quero a incoerência.” (pág. 51)

A poesia musicada de Ferreira (nascido em Guiratinga, interior de MT) não é bem uma novidade. Baixista e vocalista do bando Caximir Buquê, que marcou os palcos de Cuiabá por mais de 30 anos com sua mistura de rock, performance, teatro e poesia, reunindo ao longo da existência poetas guerrilheiros como Antônio Sodré (Sodrézinho), Luiz Renato de Souza Pinto e Toninho Lima, junto da atriz e papisa da declamação de poemas Anna Amélia Marimon (na vida real, se é que isso existe, sua esposa) e uma pletora de performers e músicos em encarnações sucessivas do bando metamórfico, Ferreira já se acostumou a encarar a literatura no ritmo da fala e na aliteração como combustível do discurso. É uma intimidade com a palavra que transparece sem muito esforço e que dialoga diretamente com a caudalosidade rítmica de Fausto Fawcett, outro escritor-músico-performer brasileiro.
eunóia já começa bem marcado por essa musicalidade. Não é difícil imaginar o trecho seguinte como letra desgarrada na boca de um bêbado acompanhado por um bando com a cozinha pegada e uma guitarra riffenta assomando no fundo (um Caximir, por que não?):
“eis-me aqui nessa tarde abafada, andando a esmo, nesse metro e meio quadrado
girando como um pião sem saída. no interior desse bloco de argamassas e tijolos do mais puro barro do rio cuiabá sob o sol de concreto
sss acidadez acidez blitz, armado desalmado até os dentes.
girando na ciranda girândola.
docidade. mel escorrendo da boca do vampiro beija-flor.
macho que é macho não pensa em melzinho.
macho tem que ser malzin.
docidade cidade amarga.” (pág. 5)

O trecho revela mais do que o pensamento caótico do personagem (alter-ego?) narrador; revela o próprio processo de construção literária, que parte de uma ideia e deixa a sonoridade das palavras ditar as próximas frases até que um novo tema emerge e arregimenta novas palavras para sua exposição, que é atravessada ou então transposta por construção relacionada, desembocando em nova construção e assim por diante. O livro é caótico, não é exagero afirmar: a flutuação constante exige a sensibilidade de um leitor disposto a embarcar em viagem turbulenta. Não há espaço pra história de rápido consumo aqui. É, de fato, uma estrada esburacada. Mas com uma paisagem embasbacante pelo caminho, consolo mais que satisfatório quando se trata de arte.

O próprio narrador mergulha no processo criativo do autor a certa altura:
“led zeppelin voa nos acordes de jimi page no computador ao lado fazendo viajar no tempo que nunca para. se parar acaba tudo se parar morre e parece que morrer não é a tônica do todo morre-se por partes as partes devagar enquanto nasce mais vida para que não se acabe tudo em morte. o negócio é o seguinte a receita é morte e vida não é severina? joão cabral de melo neto porra mas pra que tanta citação? sei lá a cabeça é assim mesmo nesse jogo de memória não tem ordem só tem caos pois se vai de um lado a outro numa fração de segundos e outro e outro e não tem fim essa porra de cabeça que divaga por tantas coisas e não se preocupa com coerências ou coisa parecida pois segue o fluxo de um pensamento em permanente estado de caos de desordem absoluta de entropia.”
(pág. 63)

A qualidade ensaística e a crítica social também não são novidades. Ferreira sempre se mostrou, como articulista ocasional na imprensa e como porta-voz do movimento rock e underground cuiabano, um duro crítico, assim como foi seu amigo e mentor Ricardo Guilherme Dicke, da gana despudorada do lucro agrário, lobby maior de um Mato Grosso cada vez mais rico e mais explorado, com suas plantações de soja e cabeças de gado, o encolhimento de território indígena, o desmatamento e as queimadas. Há em eunóia, como nas letras do Caximir e na postura de agitador cultural (a “retomada” da Praça da Mandioca, no centro de Cuiabá, deve muito a seus esforços de repopularizar o espaço com anos de eventos como o Sarau das Artes Free), uma revolta incontida contra um governo burro, contra políticos ladrões, contra pessoas preocupadas unicamente em ganhar dinheiro e adquirir posses; há uma ojeriza ao ideário capitalista de lucrar o máximo possível custe o que custar, ao modelo social vigente de trabalhar horas a fio em empregos que não gostamos pra adquirir o que não precisamos, reféns de uma roda massacrante de propaganda e consumo desenfreado, da entrega da consciência crítica de joelhos à cultura do entretenimento desmiolado. As insatisfações do narrador são constantemente recobertas com pontadas de ironia ou sarcasmo, como quando critica a venda de lotes no céu: “…são muitos os terrenos que se prometem no céu com descontos promocionais acima da média dos terrenos terrestres mas se é terreno como pode estar no céu? preciso avisar a galera: não acreditem! não pode existir terreno a não ser na superfície da terra pois se é terreno deriva da terra. céu tem sereno.” (pág. 88)

Um curta-metragem homônimo, adaptação do livro, foi lançado em 2007 por Ferreira e Joel Sagardia. Caio Mattoso interpretou o protagonista 

Uma obra tão experimental, no entanto, corre o risco de engessar sua própria forma e, de quebra, cansar o leitor. Por vezes o caos narrativo leva a lugar nenhum. Em compensação, é essa mesma natureza digressiva, filosófica e redundante que traz à tona alguns dos melhores momentos, recortes onde Ferreira consegue concatenar um misto balanceado de crítica, poesia e prosa e brindar o leitor com trechos sublimes, como quando compara deus a um vampiro: “acho que pirei de vez. sempre acho isso. sempre acabo caindo na real daí volto e vou e fico e durmo e acordo com os dias botando fogo em minhas solas dos pés que obrigam a correr sem parar na direção do fim cada vez mais próximo e descubro nessas idas e vindas nessas viagens que a ideia de apocalipse surgiu de uma necessidade individual do medo que sentimos do desconhecido do medo de nossa pequenez de pregar a iluminação de nosso próprio vazio anular a morte anular o não-ser onde se inicia nova jornada na diluição do ser como forma de energia que alimenta a continuidade da vida quer dizer morremos para deus cósmico cômico sodreliano vendaválico continuar vivendo por atavismos então concluímos que deus é um grande vampiro que suga toda a energia cósmica que o único e verdadeiro deus se alimenta de seus filhos cronologicamente será que tem alguma semelhança com os filmes de vampiro de bela lugosi?” (pág. 12)

Nos trechos citados, mais do que em qualquer elaboração conceitual, é possível sentir a força e a forma por trás de eunóia. É uma obra que ainda ecoa, respira, que perturba e inspira quem topa com ela. Infelizmente A Fábrika, que publicou o livro, fechou as portas em 2009, e não há horizonte de republicação no momento, segundo o autor. Mas além dos sebos e dos buracos intrépidos que ainda podem esconder uma cópia do livro, Ferreira, entusiasta da circulação internética, disponibilizou o bichano de graça na web, no banco do Overmundo, onde colaborava escrevendo sobre cultura.

Onze anos depois do seu lançamento, eunóia (grafado assim mesmo, junto e pré-acordo ortográfico, e sigo a métrica) segue como pilar da experimentação formal na prosa cuiabana. Resta esperar que Ferreira volte a se arriscar na literatura e nos brinde com novos livros no futuro próximo.

*O termo prosa-vitrine na escrita de Ricardo Guilherme Dicke não é nada acadêmico, tá mais prum enrolê à la caralha da minha parte, e designa uma técnica constante do autor: escolher um tópico (personagem, cena, cenário, etc.) e encadear as mais diferentes caracterizações e adjetivações pra ele, em cascata, criando uma verdadeira vitrine de significados.
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eunóia (2006)
Novela de Eduardo Ferreira
Editora A Fábrika (falecida)
138 pág – R$ ? (impresso esgotado, encontrado apenas em SEBOS) – disponível gratuitamente em VERSÃO ELETRÔNICA

*Santiago Santos é escritor, tereréficionado, tradutor e jornalista. 
Mora em Cuiabá e publica drops literários toda semana no flashfiction. 
Seu primeiro livro, Na Eternidade Sempre é Domingo (2016), uma aventura 
pé na estrada que mergulha na história e mitologia dos incas.
contato@flashfiction.com.br

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