Clovito nasceu consagrado de arte.
Céus e terra e água e luz. Tudo em cores misturado.
Lembro da primeira vez que o vi, no verão de 1975, acompanhado de Fátima, mãe de Maria, sua única filha.
Vestidos de branco, colares indígenas coloridos ornamentando a pele morena tostada de sol.
Eram lindos.
Jovens e entregues desde então ao sacerdócio da arte.
Clovito desenhava o tempo todo, bebendo café na tarde quente cuiabana.
Eu apenas olhava curiosa, seus dedos ágeis produzindo divindades primordiais extraídas das cores raspadas do crayon pastel. Sua arte em desenho hiper realista. Temática indígena a qual permaneceu fiel durante toda sua vida.
De repente, em meados da década de oitenta, eis que me deparo com outro Clovito.
Não mais as brancas vestes e os colares coloridos. Agora anjo negro vestido de andrajos, caminhando sob o sol intenso a uma hora da tarde do mês de agosto no asfalto incandescente das avenidas cuiabanas.
Clovito punk. Transformado em pura arte. Contemporâneo. Desafiando céus e terra numa febril produção de desenhos com caneta Bic. Até a exaustão desconstruindo as cores num universo monocromático.
Acontecia ali uma metamorfose.
Nós nos aproximamos de novo em 1990.
Clovito morou comigo na minha casa. Na ocasião já casada com Eduardo, grávida de Marianna, minha terceira filha.
Descobri então que uma alma feminina habitava aquele corpo magro em constante transformação.
Cuidava de mim, da casa, fazia comidinhas, vigiava as crianças com a doçura e extremo amor.
Embalou Marianna nos braços aliviando a carga doméstica que exige de nós tamanha dedicação.
E produzia muito. Voltou as cores. A cada amanhecer lá estava ele finalizando uma parede, ostentando os dedos sujos de giz e violeta de genciana.
Nessa época, tatuava a pele toda semana. Chegava da rua vertendo sangue do rosto tatuado de azul. E foi assim escurecendo até transformar-se numa máscara, eternizando a glória de Ser arte. Seu corpo arte. Suas vestes rotas, customizadas com todo tipo de badulaques e metais e bótons e adereços colocados grudados aderidos inseridos num assamblege louco louvando a si mesmo como um Deus.
É certo que já nesse tempo dedicava-se a divinização de ser.
Não lembro o dia que ele partiu.
Mas nunca mais nos perdemos de vista, ele para sempre mergulhado na insana procura da luz na cor.
Pintura inalcançável para nós meros mortais.
Seguiu seguindo sua trajetória na única direção que parecia conhecer. Amor e arte.
Assim que posso definir. Amor e arte em tudo que foi, em tudo que fez.
Acredito mesmo que há muito tempo ele já habitava o paraíso que um dia, talvez, venhamos a conhecer.
Até breve Clovito.
Nesse longo tempo
A eternidade virá.
Existir sempre foi arte.

Irigaray é contestação pura! Foto de Rai Reis

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