Por Luiz Renato de Souza Pinto*

A sabedoria é o grande tesouro da existência humana, não há dúvida, mas os valores pecuniários que a humanidade persegue a colocam como algo pitoresco, disforme, desimportante para a grande maioria. É nesse conjunto de valores que se observa uma riqueza humanitária na qual os valores em jogo não são de caráter funcional, ou utilitário. As coisas e seus porquês: a literatura é uma coisa, mas não coisa qualquer, mas algo que tem cheiro, forma, história, e que carrega o peso de cada palavra. Walter Benjamin nos apresenta pequenos textos que quase não suportamos de tão pesada carga. E pensar que em sua vivência acumulou tantas experiências basilares para a compreensão das contradições de hoje. Seu grande amigo e um dos principais tradutores, Gershom Scholem, apresenta-nos um lado dinamitador de sua inteligência. Um homem capaz de promover circularidades infindáveis na busca por um vocábulo que dê conta de determinada situação.

O primeiro traço que reparei em Benjamin e que, de fato, perdurou como característica sua durante a vida toda, era o de nunca poder ficar calmamente sentado durante uma conversa, mas punha-se logo a vagar pelo aposento, enquanto articulava as frases, e detinha-se depois diante de uma delas e, numa peculiar entonação intensiva, apresentava as suas opiniões ou formulava possíveis pontos de vista como se conduzisse experimentos (SCHOLEM, 1989, p. 16).

Esse homem atormentado pelas ideias é o que se eternizou nas fotos e caricaturas com os óculos dilatados e um cabelo despenteado. Dono de um olhar ausente que parece nunca nos olhar pela frente; o autor que ainda continua incompreendido, mas que vem sendo cada vez mais lido. É esse pensador que em sua vivência acumulou experiências bastante interessantes que nos ajudam a compreender o universo de Proust, Brecht, Baudelaire, Leskov, dentre tantos. Benjamin deixa a impressão de que não passava incólume por uma nova tradução.

A questão da traduzibilidade é posta como dupla, não apenas por reportar-se, sob a forma de uma interrogação, a um futuro indeterminado (encontrará a obra seu tradutor adequado?), e à imanência do presente (admite ou mesmo exige tal obra redução?), mas também por apontar para as diversas dimensões da temporalidade – passado, presente e futuro – encerradas no texto, em contraposição à visão do original como texto acabado, eternizado autorizadamente pela tradição (LAGES, 2007, p. 203).

É de se observar que nunca se discutiu tanto Walter Benjamin no Brasil, como atualmente e, abstraído o que possa haver de modismo nisso, há que se levar em conta a importância e a qualidade dessas discussões. “Somente entre 1983 e 1992 foram publicados, entre livros e artigos, dois mil títulos sobre a sua obra”.[1]  O Brasil é o segundo país que mais lê atualmente a obra de Benjamin.

Estudiosos costumam dividir a obra em duas fases: uma que vai de 1919 a 1925, pautada pelo interesse em construir carreira acadêmica e outra que se estende de 1927 a 1940, fase em que os escritos abandonam um lado místico e direcionam-se a uma visão materialista de mundo, constitutiva da fase em que o pensamento marxista dá o norte a seus escritos.

Em Experiência e Pobreza, o pensador nos coloca diante da questão da sabedoria. A felicidade está no trabalho, na busca, não no todo. A volta silenciosa dos campos de batalha inaugurava outro olhar sobre os desmembramentos da guerra de 1914/18;

Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes (BENJAMIN, 1986, p. 115).

Se pensarmos nas fronteiras do mundo moderno com o (dito) pós-moderno, tendo como interregno aspectos globalizantes e diluidores do coletivo, parece útil o caminho da individualidade estética como ápice, como aspecto de singularização estética; mas quando pensamos no valor da experiência como transmissora de valores e não a cultos personalistas, mesmo que também não seja uma uniformização conceitual, há então uma terceira via, qual seja: a revalorização da experiência. É com esse olhar que seguimos em frente.

Pobreza de experiência: não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso (BENJAMIN, 1986, P. 118).

Experiência e pobreza, um binômio que vai além de um pequeno texto e se encaixa no edifício vertical de seu pensamento, nas análises de Baudelaire, de Brecht, de Kafka, de Proust. Apaixonado pela cultura parisiense, por tudo o que cheirasse a francês, em suas traduções de Proust, encontramos elementos mágicos. Konder lembra-nos com uma citação um resquício aristotélico na relação de Benjamin com Proust, senão vejamos: “enquanto o escritor francês recuperava o autêntico significado do que aconteceu, o crítico alemão estava permanentemente atento para o que poderia ter acontecido” (KONDER, 1999, p. 67).

O fascínio por Paris não se explica apenas pelos estudos da obra de Proust ou Baudelaire, mas sim no ambicioso projeto que ficou incompleto, que é a redação do livro das Passagens. Benjamin era fascinado pelo ir e vir de pessoas por aquelas passagens das óperas parisienses e outros locais de acessos públicos que se tornavam o cenário ideal para a reconstrução da magia francesa do século XIX.

É como se fosse o próprio flanêur de um século que não mais abria espaço para esse tempo vago, esse desabrochar discreto de uma sociedade que explode na ânsia do capitalismo tardio, como diria Jameson. É sim, o olhar de quem já não queria mais ser reconhecido como professor universitário, de quem já rejeitara a carreira acadêmica para ser um escritor/crítico independente. Estamos diante de um homem que se pretende livre das amarras da intelligentsia alemã, e porque não dizer europeia. Que o futuro do presente conjugue sua obra como algo digno de se estabelecer como paradigma, para além das críticas sistêmicas quanto ao valor real de sua originalidade epistemológica.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Obras Escolhidas, magia e técnica; arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1986.

KONDER, Leandro. Walter Benjamin. O marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin. Tradução e melancolia. São Paulo: EDUSP, 2007.

SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin. A história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 1989.

[1]Informação trazida por Francisco de Ambrosis Pinheiro Machado no livro Imanência e História: A crítica do conhecimento em Walter Benjamin (vide referências), à página 14, em texto introdutório à obra. Os números se referem a publicações em todos os países.

*Luiz Renato de Souza Pinto é professor, poeta, ator e escritor.
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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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