Proposição artística: Romeu e Julieta para desavisados
Grupo: Teatro Faces Jovem – Primavera do Leste – MT
Em: 30.11.2016
Por Thereza Helena
O que pode um beijo?
Nos primeiros instantes do espetáculo “Romeu e Julieta para desavisados”, apresentado pelo Grupo Faces Jovem, de Primavera do Leste, na 3ª edição do festival Zé Bolo Flô, vozes de atores vestidos de preto ecoavam de vários pontos da praça central do Pedra 90, todas chamando por Romeu. Aos poucos o movimento reuniu o público numa arena. Os primeiros espectadores já procuravam o melhor batente de calçada para se acomodar quando os jovens artistas abriram caminho entre a multidão e continuaram a cena num outro ponto da praça.
Os atores reclamavam de não terem sido avisados pelo diretor que fariam a apresentação de Romeu e Julieta, e aproveitaram o ensejo para deixar claro o desejo de fazer um espetáculo que fosse “teatro performativo decolonial feminista”. O anúncio sinaliza a atenção do grupo para o tema da produção da arte contemporânea e as questões artísticas latino-americanas. O grupo ainda discutia quando foi interrompido pelo beijo entre um ator e uma atriz do elenco.
O teatro, um espaço onde o indivíduo se reconhece na ação do outro, abre essa fresta por onde é possível reverberar uma relação de identificação com a cena. Assim, pode-de dizer que a causa da comemoração vinda da plateia no momento do beijo, pode se dever às questões comuns entre público e atores, ambos na mesma faixa etária, ou mesmo da trama da tragédia anunciada.
A plateia ainda vibrava a plenos pulmões quando: outro beijo. Esse, entre dois garotos. Dessa vez, “ecas” e “viados” destoados dos gritos em uníssono foram abafados pela cena seguinte. Enquanto uma senhora do meu lado agradecia por não ter levado o filho, outro beijo: dessa vez entre as atrizes que localizaram sua ação no discurso do direito de poder fazer, encampado pelas mulheres em luta pelas conquistas femininas. As reações continuaram, e por mais variadas que fossem, tive a impressão de que o público, imóvel, só arredaria o pé dali se fosse para acompanhar a itinerância do espetáculo.
Convidados pelos atores a nos deslocar do meio da rua para a escola em frente, o espetáculo mantinha a investida de trazer para a montagem o percurso enquanto elemento constituinte da cena. Recebidos com espetinhos de queijo e goiabada à moda Romeu e Julieta, pudemos provar o gosto do conflito entre as famílias rivais através do contraste entre o doce e o salgado na boca.
O espetáculo, que começa com o conceito de dissolução de fronteiras, borrando-as, quando na dramaturgia não sabemos se é uma persona ou um ator que profere as palavras, mantém a prática no uso do espaço. Uma cena se forma num determinado local e na sequência se dissolve para ressurgir em outro, preenchendo com questões da vida ordinária as lacunas dos conflitos mais conhecidos dessa obra clássica.
As personagens também oscilam entre mais de um ator/atriz, independentemente de se tratar de homem ou mulher; assim, Romeu e Julieta também são um casal formado por duas atrizes ou por dois atores.
O espetáculo aborda questões contemporâneas como a discussão de gênero, o poder feminino e os desdobramentos reflexivos causados pela reação de se ver um beijo, adições bem-vindas a essa consagrada dramaturgia.
Texto escrito para o blog Parágrafo Cerrado a partir da programação da 3ª edição do Festival Zé Bolo Flô, no período de 29/11/2016 a 06 /12/2016