Por Antonio Montenegro*
O sapateiro, o engenheiro e o coronel.
O filósofo Ludwig Wittgenstein afirma que a filosofia se encontra no meio das pessoas comuns. Enganar-se-ia quem pensa esta como conhecimento dos doutos e iniciados. Desde quando li esta afirmação, passei a prestar atenção nas conversas, reflexões e ‘tiradas’ nos pontos de ônibus, nos campos de futebol, dentro do elevador, no metrô, locais em que somos ouvintes involuntários.
A história reproduzida neste artigo foi narrada por um sapateiro, morador do bairro de Campo Grande em Recife. Não ouvi diretamente do artesão, mas do professor e urbanista Antonio Baltar (1915-2003) quando o entrevistei em 1995 para o livro Engenheiros do Tempo, em comemoração ao centenário da Escola de Engenharia de Pernambuco.
O professor Baltar foi preso e aposentado precocemente da UFPE, após o golpe de 1964. Em face das dificuldades profissionais aceitou convite para integrar os quadros da ONU, passando a viver fora do Brasil de 1966 a 1980. Narra que, no retorno ao Brasil, certo dia encontrou o sapateiro companheiro de cela na sua passagem pelo DOPS – PE. No casual encontro, recordam os dias de prisão, e o sapateiro relata a sessão de interrogatório.
O coronel perguntou: “Seu sapateiro, o senhor gosta muito de cinema?” Ele respondeu: “Doutor coronel, sou um sapateiro remendão, tenho seis filhos, o dinheiro só dá para comprar a comida dos meninos. Não vou a cinema, não”. O coronel afirma: “ Mas o senhor é do Partido Comunista”. Ele disse: “ Olhe, já ouvi falar esse negócio de comunista, mas não sei direito o que é”. Aí o coronel tirou da gaveta uma fotografia do cinema Elite, do bairro de Campo Grande, uma homenagem a Luís Carlos Prestes. Fotografia da fachada, Carlos Prestes no meio, à esquerda o quarto sujeito era ele. Não havia dúvida nenhuma. Então, ele apontou para a fotografia e disse: “ Coronel, Virge Maria, que homem parecido comigo!” – “ O coronel quis me dar uma porrada, mas eu me afastei a tempo”.
Estaria errado o sapateiro? Responderia que filosoficamente não. Imediatamente me vem a memória o quadro do cachimbo – de René Magritte – , e abaixo escrito, ‘isto não é um cachimbo’. Sobre esse quadro Michel Foucault escreveu um longo texto, como imagem e palavra são de naturezas completamente distintas. E o sapateiro ao saber-se ‘no fio da navalha’, artesão do pensamento e da palavra, escuda-se na metafísica e na divindade, para se proteger do grande perigo: “Virge Maria, que homem parecido comigo”.
Antonio Torres Montenegro. Prof. Titular do Departamento de História da UFPE