Talvez você pense que falarei de mulheres que utilizaram a escrita como forma de resistência, desde antigamente. Talvez esteja com a ideia de que Soror Mariana Alcoforado é a estrela desta crônica, ou, conforme o grau de erudição, imaginar que Juana Inês de La Cruz fosse o objeto. Mas não, definitivamente não.
Quando meu pai faleceu, há pouco mais de um ano, descobri-me órfão, uma vez que a mãe desencarnou há mais de trinta. Aneurisma cerebral foi o que a vitimou; complicações do Alzheimer e AVCs isquêmicos, a base da complicação que o levou. Eu nunca tinha ouvido falar de aneurisma antes que ele passasse tão perto. Sei que Ignácio de Loyola Brandão foi vitimado por um e sobreviveu. Inclusive escreveu um romance, “A veia bailarina” em que descreve detalhes do que vivenciou em função do acontecido.
Não é incomum que algum escritor produza obras em que acidentes e incidentes de variadas ordens sirvam de matéria bruta para a escrita. Stephen King o fez com “A zona morta”, narrativa em que revive através de uma personagem o atropelamento que quase o levou para uma dimensão. Raimundo Carrero se insere nessa tradição nefasta, da qual extraiu um clássico: “O senhor agora vai mudar de corpo”. Metáforas obscuras coabitam esse romance em que a força da metáfora se faz imperativa. “Não tem sonhos nem pesadelos, as sombras multiplicadas da madrugada, a madrugada que é o bordado das sombras, e, dentro das sombras, os pensamentos, o sabor no segredo da fruta” (CARRERO, 2015, p. 23).
Sabemos que a vida é daqui para frente, todos nós. Quem anda para trás é caranguejo. Acontece que Carrero é pernambucano, vive em Recife. E como tal, encontra no mangue a densidade ideal para uma linguagem bruta e efervescente a fim de banhar de alegorias o universo da literatura. “Todos aqueles homens e mulheres saindo da lama para ocupar a cidade, sem balas e sem peixeiras. A revolução pacífica dos famintos, da sede e da necessidade” (idem, p. 106).
De forma que este romance foi escrito para ser lido de um fôlego só, de preferência das seis horas ao meio-dia, com a força da luz e do sol, mantendo-se assim, os movimentos de tia Guilhermina, plenos de iluminação, apesar dos cortes de sombras e de silêncio (CARREIRO, 2013, p.5).
Claro que a indicação faz parte de uma representação até mesmo folclórica de um leitor passivo que não possa tomar as rédeas da leitura na condução do objeto. Pode; cabe pensar se deve. A imaginação leva o leitor a momentos de elucubração imagética em que a memória é evocada e principia a ressignificar as coisas.
Em dois copos preparou a beberagem, jogando primeiro cachaça e depois soda, fechava os copos com a mão e sacudia tudo até ficar borbulhante, bem borbulhante.
Em seguida, misturou tudo com um pedaço de papel, de forma que absorveu o gosto da cachaça. Ficou a soda limonada com álcool. Ofereceu a beberagem aos companheiros, que elogiaram o gosto de champagne e enalteceram, aos gritos, a incrível habilidade do artesão de dedos longos (idem, p. 26).
Em meus tempos de adolescência preparei esse drinque por muitas vezes. Lá no interior do Paraná chamávamos de porradinha, sem a parte de se colocar o papel para sugar o cheiro da água ardente. Divertíamos-nos com aquilo. O universo em que as sombras de Carrero fazem uso de tal substância sugere esse mergulho. “Depois que tocava a primeira melodia, um tango com certeza, ajoelhava-se aos pés do menino, beijava os seus pés e soluçava, soluçava, sem que as lágrimas surgissem, abandonada diante do amor impossível” (idem, p. 39).
Um cabedal de situações prosaicas desfila pelas páginas que se sucedem. Outro momento que me remete ao que conheço do Recife e que aparece em mais de uma de suas obras é a referência ao Bloco da Saudade. Em 2015, em visita a Carlos Barros em pleno mês de janeiro, assistimos a um preparativo par ao carnaval, com o referido bloco. As páginas de Carrero parecem me levar ao encontro daquelas imagens. “Getúlio Cavalcanti aparecia com o violão seresteiro cruzando o busto, acompanhado de garotas tristonhas saídas do Bloco da Saudade” (idem, p. 42).
Vida longa para o mestre da escrita. Para que possamos contar ainda por muitos e muitos anos com a sua verve e plástica indomáveis. Até porque “Escrever palavras românticas, saborosas, líricas, bobas é tão cruel quanto assassinar uma criança de berço” (idem, p. 58). A minha expectativa com o novo romance de Carrero é saber o que se aprende em um colégio de freiras. A capa está belíssima, e sugestiva. Será certamente uma de minhas próximas leituras. Espero ansiosamente por alguma resenha desta obra, mas não uma qualquer; uma escrita por Maria Valéria Rezende. Será que vem?
CARRERO, Raimundo. Tangolomango. Rio de Janeiro: Record, 2013.
O senhor agora vai mudar de corpo. Rio de Janeiro: Record, 2015.