B.Lemos

 

i – o poema, extrato farmacêutico

 

(…) que não são humanos estes belos poemas,

nem de homens, mas divinos e de deuses (…).

Platão, Íon

 

vozescritura, muda e tagarela, de estranho daimon

retrato falado do acusado, monturo de ficcões

malograda petição inicial cantada

em tese, o poema, senhores, depreende-se, (re)nasce

insana rebelião, de malsinada musa

 

inapreensível, conforme depoimentos rapsódicos, o poema, contradito em si

seria, embora artifício humano, nadalgo, monstruosa forma de vida

 

(supérfluo desserviço, o poema se autonomiza)

 

contrariado, o poema se arvora em mimetizar os guardiões da cidade

não se presta nem mesmo aos fins do poeta, por assim dizer, poéticos

 

o poema, fármaco, adoece e mortifica seu autor

moléstia em cólera, o poema sobrevive, órfico

já o desafortunado poeta, este, entrevê a posteridade em vão:

delirium tremens a “40º de febre”

 

ii – o poeta, multidão de seres excepcionais

 

Pois coisa leve é o poeta, e alada e sacra,

e incapaz de fazer poemas antes que se tenha tornado entusiasmado

e ficado fora de seu juízo e o senso não esteja mais nele.

Platão, Íon

 

anfíbios, poema e poeta autodefinidos, senhores magistrados, dispensam acusações

o poeta é acometido de obsessões mórbidas

autocrítico, o poeta se excede em depreciatividade

incriminando-se, o poeta expõe a sua húbris, vanglória desmedida, seu

no mínimo, estranho e absurdo projeto pessoal e, por extensão, social

 

o poeta, esse pervertido cegovidente

confesso misantropo, o poeta principia contraditória apologia

o poeta se desdiz e revela seu impotente, mas, por isso mesmo, desígnio virulento

eivado de niilismo, o poeta desmerece os esforços políticos nacionais e, pior, simpatiza e até se identifica com inimigos históricos

o poeta, aparentemente, faz mea-culpa

 

ilusões perdidas, o poeta é ou, pelo menos, está paranoico

mesmo cônscio da própria desrazão, o poeta, vê-se, alimenta grandes esperanças

agrava sua situação em sincero testemunho, o que dificulta o julgamento

 

no intento de outra autodefinição, o poeta se confunde todo em meio a paradoxos

e deixa entrever mais um traço psicótiquesquizofrênico de sua natureza

em relatório pormenorizado, o poeta tenta descrever a sua rotina administrava e enumerar o que entende por suas exclusivas atribuições

 

o poeta calcula seu custo (preço e/ou valor) e, desorientado

confessa a inutilidade (malebenefício) de seu famigerado mister

o poeta, condição socioexistencial, não poderá, está claro, arcar com as custas judiciais

sofre de extravagantes delírios de grandeza e, para surpresa da assembleia, os relata

ele almeja justificar motivações, apela ao sentimentalismo

se esmera em gerar provas contra si

o poeta, beberrão preguiçoso, tenta nos confundir com seu palavrório ébrio

e certamente fez uso de narcóticos ou psicotrópicos alucinógenos

 

o poeta nos fala sobre a sua trajetória

faz um mapa, não da cidade, é claro, o imprestável, mas de si

o poeta parece se dar muita importância, mas não fala nada com nada

e, despropositadamente, começa a discorrer sobre um besouro

insatisfeito, o poeta figura a si mesmo como outro inseto inconveniente

dá a entender, parece-nos, que é como uma mulher cardiopata

insinua que é como um albatroz e, subsequentemente, insulta a audiência

 

o poeta se declara inadaptado à pólis, fazendo uso, segundo os termos da própria escrita de ridículas metáforas

o poeta se empenha em tentativas de confundir o júri e a plateia

insiste em eximir-se de responsabilidades pessoais e, consequentemente

da respectiva penalização legal

o poeta, afinal, realiza um esforço comovente por comunicar-se e ser compreendido

o poeta, não há o que fazer, é o pária do lado de lá, e não parece se importar

encerrado em si como em uma gruta, vislumbra-se cegueira

autossentenciado, o poema é seu desterro

 

iii – a poesia, vazio mais compleno

 

Pois não é em virtude de técnica nem de ciência que tu dizes as coisas que dizes (…),

mas por concessão e possessão divinas (…).

Platão, Íon

 

a poesia, há muito sabemos por consenso, é

perniciosa, insisto, e o poeta, para além de qualquer dúvida

cooptado, colabora, redige, ele mesmo, pasmem, em versos

a própria sentença condenatória

impeditivo ao contágio da cidade

inarredável ostracismo, em que, desde então

ensaia voluntária autocrítica:

 

– chiste indevido a qualquer hora e lugar

irredutível à fala do poeta

eis a poesia

 

nada e isto

 

  1. B. Lemos é autor de Rasga-mortalha – poemas dos outros (Editora Circuito, 2014). Teve poemas publicados no nº 89 da Revista Brasileira, periódico da ABL. Atualmente, colabora como idealizador e editor do selo Versura, da Gramma Editora.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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