Na última eleição presidencial, os eleitores do candidato derrotado foram convidados a visitar as urnas com um livro em mãos, arma representativa da importância do conhecimento, da leitura, da educação para a formação de um povo. Sem isso fica difícil se falar em nação, a menos que se refira a determinada torcida de time de futebol, citando, é claro, as com maior densidade demográfica.
Meu chão de fábrica tem sido a sala de aula, e nela reparto o conhecimento adquirido, procuro dar voz a quem solicita, ou conquista, e trato o livro como ferramenta básica para a ampliação de vocabulário, elemento dialógico, diferencial. Redes sociais são, no máximo, trincheira. E delas não divisamos o inimigo, espécie de moinhos de vento, inimigos imaginários, robôs cibernéticos a nos espionar.
Não participei da última manifestação em defesa do ensino público e gratuito ocorrida recentemente em todo o país. Fiquei em casa, mas de posse do que muitos dizem ser sua arma, embora não os veja com ela em punho em meu ambiente de trabalho. Salvo, é claro, raríssimas exceções. Compro livros, vendo, empresto, distribuo, sorteio. E em breve alugarei também.
Nesse dia de manifestações, fiquei acompanhado de Guiomar de Grammont e de seu “Palavras Cruzadas”, romance contextualizado em torno da Guerrilha do Araguaia, emblemático conflito ocorrido em território paraense, que se estendeu do fim dos sessenta à primeira metade dos anos de 1970.
Não escrevo para dar “spoiler” acerca da narrativa, busco apenas tornar necessária a leitura. A estrutura da obra mantém um fio condutor que passeia pela escrita de um caderno, diário de guerra, em que um ente feminino e outro masculino se revezam no registro de bordo; e os dois se complementam a medida que o desaparecimento político de mais um, metonimicamente, representa o conjunto de todos os mortos e desaparecidos políticos durante o regime de exceção.
Eu cresci, no interior do Paraná, vendo uma intensa movimentação política no entorno de casa. Anos depois fiquei sabendo que algumas das figuras que frequentavam nossa casa tiveram fins parecidos com alguns famosos do “Brasil: nunca mais”. Grammont desfila em um lirismo melancólico elementos compartilhados dessa energia: “Sofia interrompeu a leitura, as lágrimas a impediam de ver o que estava escrito” (idem, p. 26).
A desproporção do efetivo militar para fazer frente ao movimento revolucionário é de uma discrepância gigantesca. Desculpem-me pelo excesso, mas só com uma seleção vocabular exagerada para se apresentar os números do confronto de maneira mais próxima da realidade: “O número oscilava, nos vários depoimentos que Sofia lia e coligia, de cinco a dez mil homens, para combater pouco mais de 60 guerrilheiros” (idem, p. 65).
O olhar detido em minúcias faz da obra um caleidoscópio introspectivo em que o leitor passeia, pelos efeitos de um narrador-câmera, pelo espaço em que a pressão externa produz em quem produz o relato um efeito em espiral que projeta o leitor para o tempo-espaço referenciado naquele exato instante. “No centro, cercada de estante de livros classificados de uma forma que só a mãe entendia, a máquina de escrever habitava soberana. Proust repousava na estante ao lado de Virgínia Woolf, Machado de Assis com Eça e Flaubert” (idem, p. 82).
Claro que Proust e Woolf desfrutam de uma proximidade estética repleta de contiguidades; os outros três, igualmente, em um contra-ataque aos exageros da escola romântica. A habilidade da professora de literatura, no entanto, não interfere, pelo contrário, na liberdade da escritora, manipuladora de histórias, e nem seria de bom alvitre que isso ocorresse.
A hierarquia se faz presente em todos os níveis. Em casa, no ambiente familiar como um todo, nos espaços corporativos, como de costume. Em tempos de guerra a presença disso é extrema. De um lado a outro. Em “Palavras Cruzadas”, a tensão dramática de uma execução salta aos olhos com vigor:
O capitão tem consciência, de repente, de que vão executar uma mulher, e um arrepio lhe atravessa a espinha. Não é mulher, é guerrilheira, reage. Mira a testa entre os olhos, ela assiste a tudo do ponto de vista dele. Um poço profundo em seu rosto magro e lívido. Ele corre o dedo no gatilho, com presa e raiva. Antes dos outros, dispara (idem, p. 129).
O ponto de vista dele é o que a escrita dita. E nem é uma mulher, apenas uma guerrilheira. Se no início do livro o lirismo se concentra na imagem de uma caixinha de música, artefato que une a emotividade ao ideário amoroso, no final, “a caixinha de música tinha crescido, tornara-se a sala de espetáculos. Os movimentos ressoavam em Sofia, como se fosse, ela mesma, a protagonista do seu brinquedo” (idem, p. 227).
A vida, repleta de ausências, se apresenta por inteiro nas entrelinhas do livro de Guiomar de Grammont. A ideia de palavras cruzadas como entretenimento, seja fácil, médio, difícil, aquela classificação que indica o público alvo, se aplicada aqui, talvez aponte para um romance de média complexidade, mais pelo recorte e matriz ideológica sugerida que pela dificuldade de vocabulário.
Guiomar é uma das vinte e cinco escritoras que faziam a literatura brasileira por volta de 2004, segundo Luiz Ruffato, em publicação que a colocava ao lado de Luci Collin, Paloma Vidal, Claudia Lage, Adriana Lisboa, Adriana Lunardi, Tércia Montenegro, Heloísa Seixas e outras mais. Hoje são muitas outras. Umas mais, outras menos jovens. Nenhuma substitui outra dentre as apontadas anteriormente.
GRAMMONT, Guiomar de. Palavras Cruzadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.