Ele chegou ao lado da Ivana Arruda Leite para mais uma edição do Arte da Palavra. Na troca de livros ganhei seu volume de entrevistas com dez poetas contemporâneos. Selecionei algumas passagens de sete dos dez, sem critério algum que não fosse minha simpatia pelos fragmentos. Ficaram de fora Armando Freitas Filho e Millor Fernandes, pelos quais nutro devoção profunda, e a (para mim) desconhecida Maria do Carmo Ferreira.
A gênese da poesia está na música e na dança. Ela sai do movimento plástico que é a dança, o movimento concreto do corpo, e se associa a um movimento sonoro, que é o canto, e aí ela se desenvolve. Quer dizer, é muito difícil o poeta trabalhar sem o lado sonoro. Já o poema escrito, falado, visto, tem sempre a força dele, que está implícita na coisa intersígnica. (ÁVILA, 2004, p. 18).
Aprendemos que nossa lírica está ligada intestinamente ao trovadorismo ibérico, com nuances provençais e galegas. E que mesmo o cordel nordestino se filia a esse tronco. Por outro lado, observa-se que a constante mutação na estrutura do poema não se cansa de nos surpreender, se não pelo conteúdo, pela forma. “A diferença básica entre a palavra tipográfica e a palavra eletrônica é que a primeira é necessariamente estética e a segunda, não”. (RISÉRIO, 2004, p. 30).
O caminho percorrido pela arte tem na cronologia apenas uma referência, e não se pauta por transformações capazes de reafirmar conceitos, ou perpetuar estéticas por dominantes que possam parecer. “A sociedade está tão fragmentada que no futuro cada um será artista para si próprio, como já está sendo sugerido pela internet, pelo computador, pela câmera digital”. (NUNES, 2004, p. 128). Esse futuro chegou. Se o microcomputador revolucionou a arte, os smartphones dão novos contornos para a utilização da tecnologia em todos os campos do saber.
A indefinição das formas parece ampliar a definição do que pode vir a ser poesia. “Muitos dos poemas que escrevo só me parecem poemas porque oscilam entre a poesia e a prosa, a fala e a escrita, a história e a ficção”. (PEREIRA, 2004, p. 76). Ao menos dois dos dez entrevistados se aproximam da definição de Manoel de Barros para sua arte, a de inutilidade. “Não aceito a poesia como remédio de coisa alguma, pois seu grande mérito, se há algum, é ser algo completamente inútil”. (LEITE, 2004, p. 142).
E parece que, semelhante à parábola do filho pródigo, a poesia acaba voltando para casa, depois de um passeio de alguns séculos por caminhos distintos (?): “Os poetas migraram para a música porque o som distorcido das caixas de som eram as caixas de guerra que eles precisavam”. (CHACAL, 2004, p. 50).
O encontro entre poesia e música a que Chacal se refere é seu próprio projeto CEP 20.000 que consolidou a parceria entre as artes ao longo de algumas décadas, no Rio de Janeiro. “No dia em que a poesia reaprender a falar a língua das ruas, aí acaba a chorumela, você vai ver”. (ALEIXO, 2004, p. 116). Para Ricardo Aleixo, havia o desejo de que as fronteiras entre as artes se desfizessem, ou ao menos se interpenetrassem com mais facilidade: “Sonho uma obra aberta, em que os códigos se interpenetrem”. (ALEIXO, 2004, p. 112). “Assim como a antropologia é uma poética das sociedades, a poesia é uma antropologia do indivíduo”. (RISÉRIO, 2004, p. 35).
Se entre as artes não há consenso, o que dizer de comparações estéticas, de movimentos literários que se constroem e desconstroem, à luz de elementos apolíneos e dionisíacos que se mimetizam de maneira síncrona ou assíncrona em nossas culturas. “Concretismo: dez em matemática. Dez em política. Zero em português. Poesia marginal: zero em português. Dez em biologia. Zero em matemática”. (CHACAL, 2004, p. 50).
Parece que o Concretismo tem em comum com a Poesia marginal o fato de ser nota zero em português. Claro que é uma ironia, como quase toda a obra desse carioca que passeia pela palavra há algum tempo. Fico pensando se o dez em biologia diz respeito ao estilo de vida, o fato de estar de bem com a vida, que muito de sua poética revida. Revalida.
Acho que minha poesia tem muito dessa vivência em família, uma certa expansão por meio do verbo (que é meu pai viajando em sua Pequeri de História e Mito) e uma certa contenção no verbo ( que é minha mãe medindo as palavras para não destruir aquilo mesmo que deseja comunicar). (PEREIRA, 2004, p. 62).
Edmilson de Almeida Pereira demonstra como a morfologia denota certo entendimento da dinâmica da palavra. Verbos indicam ação, portanto, deslocamento temporal. Sua presença (a do pai) recupera o movimento entre a história e o mito, sob a égide da expansão; sua ausência, a contenção proposta pelo silêncio momentâneo e a valorização minimalista da palavra em movimento. Talvez a poesia deva enveredar pela contenção vocabular, não necessariamente lírica; talvez. Não há quase certezas nesse palmilhar.
Incomodou-me bastante (e isso não é ruim) a entrevista com Sebastião Nunes. Também eu “Odeio tapinhas poéticos nas costas e acho um saco ficar jogando confetes em trocas de outros confetes”. (NUNES, 2004, p. 122). O livro de Fabrício Marques é repleto de mineirice. Espécie de feijão tropeiro com bastante torresmo. Comida de boteco. Mas com um cardápio não regionalista.
Difícil compreender o que se faz quando se está imerso na criação. O tempo é o senhor das coisas, sem dúvida alguma. É nesse sentido que fiquei incomodado com Sebastião Nunes. Sobretudo pela lucidez de quem não se deixa incomodar pelos modismos passageiros e pelas veleidades do meio que conhece bem. Fico com a imagem emblemática das revoluções que ele apresenta:
A primeira revolução técnica, a agrária, começou há dez mil anos com a enxada. A segunda, há 500 anos, com a imprensa. A terceira, há 300 anos, com o tear mecânico. A quarta, com o controle da eletricidade, há 100 anos. A quinta, com o controle das mentes, com a televisão, há 50 anos. A sexta, com a internet, há uns cinco anos. Veja como o tempo fica curto entre uma revolução e outra. (NUNES, 2004, p. 128).
A entrevista é de 2003; deve estar próxima a nova revolução. A editora pela qual saiu o livro de Fabrício chama-se Gutemberg. A enxada ainda é o símbolo de quem quer terra para quem vive da terra. O tear chinês se sobrepõe ao algodão brasileiro. O controle da energia está nas mãos de alguns oligopólios. A televisão se reinventa para continuar comandando o picadeiro do streaming, das séries e agora das lives. Se você gostou, se inscreva no canal e dá um like.
REFERÊNCIAS
MARQUES, Fabrício. DEZconversas. Belo Horizonte: Gutemberg, 2003.