Uma das mais antigas indústrias do mundo, o cinema japonês – iniciado em 1896 – é atualmente a quarta maior indústria cinematográfica do mundo, com 58% de seu lucro vindo diretamente do mercado interno. Terra natal de grandes mestres do cinema como Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu, o Japão é o único país asiático a ganhar quatro vezes o Oscar de melhor filme estrangeiro. Resultado da cultura que mais consome livros no mundo e a maior indústria de animação televisiva do planeta, seus filmes detém uma linguagem própria tão específica quanto os tropismos do cinema americano.
Famoso por seu cinema pós-guerra, o Japão alcançou os olhos do ocidente no começo dos anos sessenta, onde inspirou diretores americanos à desenvolverem uma simbologia ainda desconhecida ao cinema linear de D.W Griffith. Junto da avant-garde francesa, os filmes japoneses representavam uma injeção de política e criticismo à um cinema engessado nos moldes do teatro e espetáculo. De repente, os filmes americanos se tornaram mais cínicos, mais poéticos e mais políticos do que os filhos do tio Sam estavam acostumados. No Japão, estes filmes representavam a realidade do país que lutava contra os efeitos da guerra e a ferida da bomba. Abalados pelas perdas recentes e mudanças políticas, uma geração de japoneses começou a sentir-se insatisfeita com a visão imperialista do governo.
Incomodados com a falta de transparência em sua política e com o rumo destrutivo para o qual seguia a sociedade japonesa, jovens diretores passaram a buscar uma forma mais crua de expor a realidade. Fugindo das montagens e produções de alto custo, voltaram-se para a câmera na mão e o corte bruto para expressar sua linguagem. Kazuo Hara, talvez o mais conhecido dentre estes diretores marginais japoneses, busca não só documentar a realidade, mas fazer da câmera uma maneira de interagir com ela. Muitas vezes tachado de sádico e amoral, Hara nunca para de gravar. Munido de sua câmera, gosta de instigar as pessoas ao máximo até que elas, incitadas pela presença da câmera, externem emoções de maneira sincera para suas lentes. Seu trabalho, focado sempre em temas considerados tabus pela sociedade japonesa, fora censurado e proibido no próprio país por muitos anos, exposto apenas na Europa e nos Estados Unidos.
Em “Adeus CP” de 72, seu primeiro filme, em parceria com um grupo de deficientes, expõe a cruel verdade das pessoas com paralisia cerebral. Acompanhando a luta dos deficientes para serem reconhecidos por uma sociedade que rejeita seus defeitos e tenta esconder as falhas do passado, num país onde era comum a execução de crianças com paralisia, Hara entrega um documentário patrocinado e alimentado por deficientes, com seus depoimentos, suas aspirações e suas opiniões quanto ao seu papel na sociedade. O filme, que levanta questões como o casamento entre deficientes e escancara em suas imagens os calos e imperfeições de corpos retorcidos dos paralíticos, gerou debate e fomentou a discussão quanto aos direitos dos deficientes no país. Acusado de humilhar e expor um show de aberrações, Hara fora tremendamente criticado por seu trabalho, mas sua voz não se calaria, e ganharia um novo tom dois anos depois.
Seguindo a rotina de sua ex-mulher, Miyuki Takeda – feminista extremista famosa por publicar uma série de artigos no início dos anos setenta – “Extremamente Privada Eros: Uma música de amor 1974” direciona suas câmeras para sua vida pessoal. O documentário que começa com uma cena do próprio Hara chorando após uma discussão com sua ex-mulher, acompanha a rotina da ativista enquanto ela começa um centro de apoio às prostitutas, distribui panfletos entre garotas de programa – o que leva Hara a ser espancado por cafetões durante as gravações – se une a uma comuna feminista, engravida de um soldado negro americano e arranja um emprego num stripclub, tudo isso enquanto ataca seu ex-marido e contesta sua qualidade como cineasta.
Com cenas chocantes de sexo entre prostitutas infantes e soldados americanos, brigas com cafetões e ataques diretos aos moldes familiares japoneses da época, “Extremamente Privada” é maior tentativa de Hara de interação social com a câmera. Enquanto destrincha sua vida amorosa e expõe sua ex-mulher e sua atual amante – a técnica de som do filme – ao mundo, Hara usa a câmera e o documentário como pretexto para construir uma relação entre estas pessoas. Ao gravar as discussões, inseria na relação um quarto elemento, um outro olhar. Íntimo e provocador em todos os sentidos, com uma edição truncada e áudio descompassado, o diretor quebra não só os padrões do cinema de seu país, mas a estrutura do documentário em si com este segundo filme.
Seu mais premiado trabalho “O lamentável exército do imperador segue marchando” – o filme lhe garantira não só o prêmio entre a Academia dos cineastas do Japão, mas o reconhecimento nacional e internacional que seu trabalho merece. Responsável por inúmeros debates e críticas de mais de cinquenta e cinco especialistas, o filme é até hoje um dos documentários mais impactantes já feitos.
Tentando trazer justiça às famílias de dois adolescentes supostamente assassinados após a segunda guerra mundial por ordens militares, Kazuo Hara acompanha o único sobrevivente de um batalhão perdido em busca da verdade. Okuzaki Kenzo, conhecido no Japão por seus constantes ataques ao imperador e suas decisões políticas durante a guerra, rastreia ex-oficiais de alta patente e desvenda uma realidade tão cruel e intragável que beira o absurdo. Evitando definir uma opinião, Hara mantém sua câmera gravando enquanto Kenzo invade casas, enfrenta a polícia e agride antigos companheiros de guerra em sua busca desesperada por provas que incriminem o imperador Hirohito.
Sem preocupar-se com estética ou linearidade, “O lamentável exército” beira um filme caseiro dada sua pífia estrutura. Muitas vezes mal iluminado, editado como um enorme brainstorm de informações, o filme deixa clara a intenção de Hara em não só evoluir sua crítica política e social, mas sua linguagem estética. Com seus trabalhos seguintes, “Uma vida Dedicada” de 94 – sobre a vida amorosa do famoso escritor japonês Mitsuharu Inoue e sua batalha contra o câncer – e “Ainda não é dia de Desabrochar” de 2005 – seu único longa não documental – Hara comprovou sua excelência como diretor e após o reconhecimento mundial de seus trabalhos, a aceitação dentro de seu país foi gradativamente aumentando dentro do meio cinematográfico.
Com setenta e um anos, seu mais recente trabalho lançado no Japão no início deste ano permanece ainda reservado ao mercado interno. Voltando às suas raízes documentais, Kazuo Hara parece obstinado a manter vivo seu olhar gauche sobre a sociedade japonesa. Seu trabalho, emocionante em sua veracidade, cruel em sua simplicidade e certeiro em sua crítica é uma parada necessária aos interessados por cinema. Suas imagens, porcas em suas composições, acabam por evocar uma poesia na vida marginal das prostitutas, deficientes e homens perturbados pela guerra. Mesmo em “Uma vida dedicada” sua maneira de documentar os percalços do câncer e a violência do tratamento exibem a necessidade do diretor em recriar a verdade em seus mínimos detalhes. Sem papas na língua, Hara aponta o que acredita ser a maior qualidade de seus filmes como um pai orgulhoso: “Eu faço filmes amargos, eu odeio a sociedade Mainstream”.
Apesar da importância de seu trabalho, da força de suas imagens e do impacto de seu argumento, sua visão anarquista é tão transgressora que jamais alcançará o mainstream que o diretor tanto repudia, destinada a mudar vidas aos poucos, em pequenas dosagens, da maneira marginal que Hara aprendeu a fazer cinema.
Descoberta imensurável, muito obrigado! 🙂
também achei massa conhecer esse cara, essa história, agora é ir atrás dos filmes!