Jacira nasceu nas bordas do pantanal. A lagoa de tijuco era seu lugar preferido. Ali passava as tardes na água morna e barrenta. Ao pôr-do-Sol o espelho d’água transbordava em cores e os pequenos jacarés nadavam ao seu redor em graciosos movimentos. Sua diversão era pegá-los pelo rabo e fazê-los deslizar na superfície plana do tijuco. Trazia a pele morena e aveludada pela sílica do barranco de terra úmida e vermelha das margens. Era uma jovem muito bonita. O corpo forte como madeira de imbuia. Tostada pelo sol da planície pantaneira, nadava por toda a extensão da baía, seu universo original, de onde nascia sua vocação mística. Jacira acreditava ter vindo ao mundo com poderes divinos que lhe conferiam um caráter mágico.
Era capaz de proteger a fauna e a flora apenas evocando as forças da natureza. A um simples gesto seu e os ventos sopravam, as águas encrespavam, a tempestade desabava pesada sobre a baía que parecia urrar como o esturro de uma onça. A ventania forte sacudia as ramas da mata e deslocava de lugar as imensas pradarias flutuantes, os campos de sarã florido e doce sob os quais se abrigava imensa vida. Jacira sentia seu poder aumentar a cada dia. Sua conexão mítica se estabelecia em amplitude cada vez maior, com insetos e pássaros, com macacos e onças, serpentes e caramujos, antas, capivaras e cutias. As garças acompanhavam seu percurso nas águas quando nadava em mergulhos, dominando a natureza aquática e selvagem do pântano.
Sempre temida pelos caçadores predadores, ao perceberem que ela se aproximava ligavam os motores dos botes e tratavam de ancorar em algum lugar escuro e seguro das margens. A região era muito procurada pela caça e pesca abundante, onde se aventuravam malfeitores sem escrúpulos cujo interesse era o sórdido comércio de peles de animais silvestres e o cativeiro para tráfico. Sua presença intimidava essa gente perigosa afastando-os dali. Apenas os pescadores canoeiros, descendentes de antigas famílias do local, tinham livre trânsito nas águas de Jacira. Sentiam por ela profundo respeito, mesmo porque temiam o seu estranho poder de dominar animais e de provocar tempestades.
Corria a lenda que Jacira, nascida em meio as águas pantanosas possuía muito mais que uma alma humana. Consideravam-na uma espécie de divindade mandada à terra para defender a natureza. Sua mãe lhe dera à luz durante um banho no tijuco, num entardecer chuvoso e abafado, ao pôr do sol e ao nascer da lua, quando as águas rasas se tingiram de sangue vermelho e quente. Foi assim que Jacira nasceu, flutuando na superfície barrenta de uma onda provocada por um gigantesco jacaré do papo amarelo. Tomando a criança nos braços sua mãe nadou com todas as forças em direção a margem enquanto o jacaré mergulhava novamente desaparecendo na turbidez do lodo do pântano.
Cresceu livre e solta, banhando-se no doce das águas, conversando com animais e plantas e evitando o convívio com as pessoas. Sua mãe era a única a chegar até seu coração selvagem. Todas as tardes banhava-se em meio aos jacarés da baía, sem o menor temor, quando se deparou, certa vez, com o gigante do papo amarelo. Não era medo o sentimento que a invadiu naquele momento. Era profunda admiração e encantamento. Aproximou-se dele sem temor circulando ao seu redor em lentas braçadas. Acariciou seu dorso rugoso e respirou profundamente o cheiro fértil das algas aderidas no seu dorso. Num rápido e ágil movimento montou em suas costas, enlaçando-o com os longos braços. Estranhamente o gigantesco réptil não reagiu, deslizou docilmente para o interior da baía, onde permaneceram horas a flutuar na luminosidade da tarde.
Desde então tornaram-se inseparáveis. Comunicavam-se telepaticamente, estabelecendo uma relação prodigiosa entre si e a natureza. Eram os guardiões absolutos da baía. A partir de então os caçadores aventureiros não mais se atreviam a invadir aquelas paragens. Apenas os moradores locais, acostumados a presença de Jacira, viviam suas vidas simples remando as canoas nas águas plácidas guardadas pelo encantado poder que dela emanava.
Sempre que alguém mal-intencionado aparecia por ali, Jacira surgia do meio do nada, cavalgando o jacaré gigante, numa onda imensa, lançando violentamente a embarcação contra as margens onde se estilhaçava em pedaços. Seus tripulantes desapareciam misteriosamente sem deixar rastros. Os pescadores locais afirmavam, fazendo sinal da cruz, que com certeza o jacaré os devorava como castigo. Ou que Jacira os enredava nos cipós da mata arrastando-os sobres os pedregulhos até transforma-los em pó. Ou ainda que os carregava para as profundezas da baía decepando as suas cabeças, e jogando seus restos as piranhas carnívoras.
Era o jovem Antônio, que a acompanhara durante a infância nas travessuras de criança, quando banhavam juntos nas águas do tijuco, catando conchas no lodo das praias e perseguindo a lua refletida na baía. Entre todos era ele o único que tinha com ela uma certa amizade. Chamavam-na de bruxa, feiticeira e encantadora de jacarés. O pequeno lugarejo era carregado de superstições e antigas crenças. Nesse ambiente cheio de magia não havia ninguém além de Antônio e sua velha mãezinha, em quem Jacira confiasse. Devido ao seu gênio irascível e selvagem não chegou a frequentar a escola e tudo o que sabia havia aprendido por conta própria, observando o mundo natural, o céu, as nuvens, os astros, a estações de cheia e de seca, o movimento das águas, a trajetória dos pássaros e as pegadas dos bichos nas areias.
Sabia das mudanças de clima, do percurso das estrelas, das migrações das aves, da mudança de pele das serpentes, mas não sabia nada do amor, nunca sentira por quem quer que fosse o coração bater mais forte, nem sequer uma atração que lhe provocasse um sentimento maior. Acreditava apenas na sua mágica missão de defensora da natureza, e sendo assim tinha a alma blindada contra as paixões humanas.
Antônio, além da pesca, dedicava-se a trabalhar como guia para os turistas nas pousadas do outro lado da baía. Conhecedor de todos os caminhos das águas, era muito requisitado na época de temporada. Falante e bem-humorado fazia amizade com muita facilidade, mesmo porque era um rapaz agradável, tratando a todos com gentileza.
No mês de agosto, a estação da seca abria grandes praias margeando a baía e os jacarés lagarteavam ao sol num preguiçoso e interminável sono. Foi nessa ocasião que apareceu por ali um forasteiro. Seu nome era John. Alto e bonito, aparentava seus quarenta anos e portava-se com desenvoltura, seguro de si, o que lhe conferia um ar de importância. Apresentou-se como biólogo da universidade de Cambridge, Inglaterra, e contratou os serviços de Antônio, indicado para ele como o melhor guia daquela região. Insistiu por um passeio noturno uma vez que sua pesquisa era voltada para animais de hábitos notívagos.
Saíram ao entardecer. Os mosquitos ferviam no horizonte, ruídos estranhos vinham da mata, onde a macacada guinchava alegremente, enquanto o tropel dos caititus causava alvoroço nas trilhas entre as árvores. Os pássaros recolhiam-se aos ninhos sob as sombras da noite que caia. Na imensidão das águas doces ouvia-se de longe o mergulho dos bichos banhando-se nas margens. Tuiuiús bicudos encolhiam-se no topo das arvores secas desgalhadas. Os olhos dos jacarés, acesos, faiscavam como brasas. A lua cheia surgiu no horizonte produzindo uma luminosidade mágica.
– Que foi isso? Perguntou John, assustado ao vê-la desaparecer. Antônio explicou-lhe que se tratava de Jacira, a encantadora de jacarés, a bruxa protetora das águas, a semeadora das matas, a guardiã do mundo natural. Disse-lhe também que era perigosa e selvagem, e que não perdoava os predadores assassinos. John, no entanto, não se intimidou, e no outro dia bem cedo saiu andando pelos arredores do local onde a avistara. Sondou as margens por horas até que a encontrou, estirada sob o sol numa praia erma, e ao seu lado, parecendo dormir placidamente, o imenso jacaré rei, descomunal e assustador réptil gigante.
Aproximou-se cauteloso imaginando surpreendê-la, mas Jacira levantou-se agilmente com um cajado, pronta para defender-se. O gigante do papo amarelo abriu os olhos sonolentos e postou-se ao lado dela. John ficou pálido de espanto. Como podia ser real aquela criatura? Encararam-se durante alguns segundos. Jacira sentiu o coração disparar numa emoção desconhecida. Pela primeira vez sentiu medo. Medo do sentimento que invadia sua alma. Medo da sensação absurda de não ter o controle de si. Medo da paixão que a dominava.
John percebeu esse medo. E aproveitou-se disso. Seduzir e envolver mulheres era seu jogo preferido. Não precisava de palavras. Sabia usar a linguagem do corpo. Entregue ao encantamento do amor, Jacira se tornou frágil, passiva, desconectada de tudo que antes lhe fazia sentido. Absorta no idílio romântico, vagava as tardes pelas praias, ao lado de John, mostrando-lhe os segredos da mata, os caminhos das águas, confiante e feliz, feliz como nunca sonhara ser em toda sua vida.
De longe, Antônio observava o movimento do casal, com o coração carregado de ciúme e ressentimento. Sentia uma espécie de apreensão, um pressentimento ruim, mas quando foi falar sobre isso com Jacira ela voltou-lhe as costas bruscamente num gesto de desdém, e o ignorou. Estava totalmente envolvida naquele estranho sentimento que a transformara numa mulher apaixonada. Estava cega de amor, naquele momento nada nem ninguém a faria desistir do seu sonho. E o seu sonho era John.
Ele, no entanto, ocultava sua verdadeira intenção, roubar-lhe o bem mais precioso, o gigante do papo amarelo, aquele espécime fantástico que o levaria ao topo da ciência.
Aguardou com paciência o momento oportuno, até que chegou a hora propícia. Jacira dormia na rede preguiçosa, balançando molemente na tarde abafada.
O jacaré rei lagarteava no mormaço da praia, ignorando o perigo que se avizinhava. John seguiu a trilha que levava até a margem. Andava descalço pisando leve para não fazer barulho. Preparou a espingarda para dar o tiro. Tinha o jacaré na mira e bastaria apenas uma bala. Um único disparo, e se ouviu um grito. Antônio que o seguia de perto, jogou-se sem medo entre o atirador e a presa. Jacira despertou de súbito, e assustada correu e deparou-se com a cena trágica. Antônio agonizava ferido de morte sobre a areia. John em choque, permanecia com a arma em punho. Num instante todo o encantamento se desfez. Jacira entendeu o terrível engano, John era um predador assassino como os outros.
Lançou-se sobre ele numa fúria desmedida, arrancou-lhe os olhos das órbitas com as unhas, e quando o viu cambalear ensanguentado sacou a faca de concha que trazia presa a cintura e lhe cortou a cabeça. Retalhou seu corpo e o lançou as piranhas carnívoras. Depois recolheu o pobre Antônio e abrindo-lhe o peito retirou seu coração e o entregou ao jacaré gigante. Nessa hora uma estranha magia aconteceu, no fundo dos olhos do grande rei do pântano um brilho luziu com intensidade e força e duas lágrimas rolaram como pérolas sobre a areia úmida. Era a alma de Antônio que despertava para uma nova vida que se abria nas profundezas do mistério.