Por Edmilson Borret*
primeiro de tudo veio a chuva, de mansinho pois vindo… e deixou o vasto tudo mais úmido, bem mais que antes… era um lameiro só, de dar gosto… mas então eu só espiava ainda, que não era tempo já de aventurar… me deixei ficar, e ficando fui ficando… tinha uns escuros por vezes, mas logo depois tinha uns claros outrossim: era a vida, acho, brincando de gangorra… por deus, criatura, sai desse lameiro que já é tempo, pai gritou… arreda pé, luz dos olhos, não tá vendo sol chamar não?, mãe retrucou… ergui cabeça, enchi peito, estiquei pernas – cadê que pernas iam!… caramujo, tatu, caranguejo, homem: parece tudo de família mesma às vezes!… e novidade de minha parte não havia jeito de haver… fiquei mais…ocasião, pai veio com enxada, serrote, machado, anzol e se fez de besta em barganha: “serra, serra, serradô, eu com machado, você com anzó, vamos ver quem ganha dinheiro para dar à nossa vó”… ficando fiquei mais, e pai arregalou, bufou, pisou forte e se foi… voltou mais não… veio mãe pois acenando belezuras: olha, luz dos olhos, olha que balão mais lindo de morrer!… “cai-cai balão, cai-cai balão, aqui na minha mão, não vou lá, não vou lá, não vou lá, tenho medo de apanhar”… e ficando fiquei mais… mãe de tristezura entristeceu e se foi também… peguei frieira, bicho-do-pé, a espinhela caiu, o peito doeu de dor diferente, de dor que a gente não entende em pequeno e – vai saber por que – não entende nunca em adulto tampouco… e veio outra chuva, e outra veio também, e mais outra de soma, e o lameiro era a perder de vista então… até a vida largou mão da gangorra e arrepiou carreira dali… mãe não vinha mais não, que tinha ido já ninar anjos… pai tampouco não vinha, que – vista fraca e mazela dos anos – andava botando tento no chamado de mãe para ajudar no coro… passado o tempo de dias e noites, adiantado em anos, hora era de sentir terreno: mole estava ele ainda, embora que chuva chovesse mais não… chegando então veio chegando mão estendida, bonita de doer os olhos… abreviei medo e arrisquei passo em falso… desânimo querendo mais descanso bambeou a perna… acabrunhei… mão estendida bonita de doer os olhos de prontidão estava no apesar… o certo destino possível da gente toda nem só lameiro é, falou… espiei sol de olhos fechados – dor doída de luz não acostumada e de belezura de mão estendida que chegando veio cegava então… arregacei coragem e senti vida num salto só… e vida tinha de todas as coisas aos montes!… vida sobejava num ajuntamento de ensurdecer sentidos!… escutei vida com respeito quase de rosário e mão estendida mostrava valia manifesta que vida tinha por demais… e explicava de par o que no tosco coração eu não compreendia já… por que dor dói? por que chuva vem, de mansinho caindo e lameiro só de dar gosto faz? por que sol se vai, e mãe se vai, e pai se vai também?… nem tudo mão estendida bonita de doer os olhos explicou – tempo encurtou e não teve cabimento de tudo dizer… de pouco que explicou, porém, em boa quantia muito explicou, no tempo mesmo em que me acarinhava aninhado… lameiro há léguas e anos atrás ficado ficou e campos de terra dura boa de pisar os pés pisavam já no dia em que mão estendida bonita de doer os olhos por sua vez partindo também se foi… de novo o peito doeu de dor diferente que a gente não entende, vontade vez mais deu de largar caminho reto, virar de través mais adiante, amaldiçoar engano e deixar o dito pelo desdito: voltar a ser homem de par com caranguejo, tatu e caramujo… tarde porém era já: idéia brotada na alma mão estendida bonita de doer os olhos deixado tinha – que era a de me ver feliz nessas infelicidades sendo… e feliz sendo fui, mesmo dor doendo… e mais adiante além vida reencontrei que me acenava, e me encarou com ternura e sério comigo falando falou: não se antevê caminho no caminho não, seu moço, nem se atalha lição demorada de lameiro, de dor, de medo, de sol ou de chuva!… entendi o que de entender carecia, ao menos ali naquele ido dia: que em matéria desse entendimento professor muito ainda de ter teria… e vida sorrindo me sorriu de um jeito, mas de um jeito tão gostoso e de desuso, às gargalhadas quase, e me convidou pra brincar de gangorra… e no tempo em que a gente brincava, feito criança que de pronto voltei a ser, olhei mais longe, lá onde o dia quase exausto dava réstias de claridade ainda, e tomei ar enchendo pulmões… ventozinho morno vinha vindo, rumoreando nas folhas, na crista das águas, nos bichos amoitados e nas casas dos homens à roda toda… e passarinhos esvoaçando iam já, no proveito de ralos de luz em filetes, pacientes como toda criação deveria ser… e na hora tal em que os primeiros vultos da noite chegando chegaram, entendi que hora era de acender o fogo e pôr de posto a mesa… e isso só muito era já… e menos não era o caso… e para nunca mais haveria de o ser, amém.
Edmilson Borret, poeta, contista, acabou de lançar o livro de poemas “Entre cão e lobo”. Tem trabalhos publicados em fanzines e suplementos literários como AMEOPOEMA e Revista Acre. “Lameiro” foi publicado originalmente no Suplemento Acre nº10, de 2017.