Sempre tive um pé atrás quando se fala em dança. Apesar de reconhecer a enorme importância dessa arte para a humanidade, sempre recuei, tanto para dançar quanto para consumir espetáculos. Ultimamente tenho revisto essa posição. Em Cuiabá, a dança vem progressivamente conquistando espaços antes destinados para as elites, academias e comemorações insossas das escolas de balé onde as famílias colocavam suas filhas como parte de uma formação clássica e elitista. Aos poucos a dança contemporânea foi tomando seu lugar e quebrando as fronteiras, unindo outras linguagens como o teatro e a performance, dando um outro ar aos passos experimentais que convidam a bailar em outras fontes criativas.
Elka Victorino faz parte desse novo movimento que expande essa forma de arte para outros espectadores, numa perspectiva que encanta e que se conecta a um novo modo de encarar a dança. Batemos um papo onde abordamos essas e outras questões.
Ela responde de pronto: -Elka é cuiabana, filha de cuiabanos, formada em Educação Física na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), fez fisioterapia. Tem formação em dança na Royal Academy of Dance, inglesa, como bailarina e professora de Ballet Clássico.
Segundo Elka, a dança entrou em sua vida por indicação médica para corrigir um problema no joelho (cuiabano fala “cambaio”) – começou os estudos de balé para fazer essa correção. Outro motivo também, “sempre fui uma pessoa muito tímida: “Coloca essa menina na dança!”, diziam, “ela vai ter uma comunicação melhor”. – Bom, não melhorou nem uma coisa, nem outra, rsrsrs, mas eu continuo dançando!
Elka diz que: A dança virou minha vida, é a minha profissão primária. Foi daí que comecei a ganhar dinheiro. Não me reconheço mais nessa vida sem ser bailarina, mesmo passando por outras profissões como educadora física, no serviço público ou como fisioterapeuta numa instituição de ensino superior, mesmo nesses lugares meu corpo é um corpo bailarina.
Você tem uma formação clássica e de repente está fazendo um trabalho hiper contemporâneo com uma linguagem que revela que tem uma pesquisa contida aí, como que você chegou a esse diálogo do clássico com o contemporâneo?
Na década de 80 a gente tinha o ensino de dança aqui em Cuiabá pautado na técnica clássica, quando muito uma dança moderna, um jazz. Então, a minha formação passou por essas linguagens. Na década de 90 a gente começou a ter interferência da dança moderna e da dança contemporânea. Veio através do grupo Vôo Livre, quando uma Cia francesa veio para Cuiabá e a gente conseguiu fazer alguns intercâmbios. Fazer intercâmbio, naquela época, era ir para São Paulo, para o Rio de Janeiro, ficar mês de janeiro nas escolas de dança, enfim, viajava para conhecer outras metodologias. Assim, conheci primeiro o balé moderno lá no Ballet Stagium e um profissional que já tinha um pé bem forte na dança contemporânea. O trabalho no Stagium já era um pouco assim. Daí em 1997 comecei a dialogar com esse profissional e a fazer umas residências artísticas. Foi quando ele veio para Cuiabá montar o primeiro trabalho de dança contemporânea com a gente, o espetáculo Passion. Virou paixão, tentar desconstruir o corpo bailarina pra poder fazer um trabalho mais pautado na vida. Algumas interferências foram me direcionando para esses trabalhos de dança contemporânea.
Qual a perspectiva da dança contemporânea?
As artes no geral quando entram nessa fase da contemporaneidade elas começam a se dialogar, e a dança fica um pouco atrasada, eu considero assim. Mas, agora ela já tem um amplo diálogo com o teatro, com as artes visuais, com a poesia, com a literatura. É tudo muito conectado, muito híbrido, a ponto de você não conseguir mais categorizar aquele trabalho: é dança? É teatro? É performance? É tudo isso e também não tem mais essa necessidade de categorizar. Por classificação, políticas, ou para concorrer em editais, a gente precisa colocar nas caixinhas, mas na hora do processo criativo a gente tenta não separar mais, para que a criatividade possa fluir, pra que a gente consiga chegar no ponto que a gente deseja.
Qual foi o seu olhar ou a sua experiência que te fez chegar a esse ponto de criação do espetáculo Para Menores?
Em 2010 eu prestei um concurso aqui no estado com aquele pensamento “Preciso me estabilizar” e o concurso só tinha vaga para educador físico, e os melhores salários na época, para trabalhar no Centro Sócio educativo de Cuiabá. Aí falei, vou arriscar e conhecer onde é esse lugar, o que se faz nesse lugar. Em 2013 eu entrei e tive uma vivência muito intensa com esses adolescentes em cumprimento de medida. Meu corpo mudou, minha visão de mundo mudou. Até então só trabalhava com a nata da sociedade, todas vestidas, plenamente arrumadas, de coroa, não é? E conhecer esse nicho social foi muito marcante. Não tinha como sair do meu corpo. Eu parei de dançar uns seis meses e falei: -Meu Deus! O que é isso que estou fazendo? Dancinha contemporânea e esse povo se matando na cadeia? Até eu me reorganizar como bailarina demorou um tempo e aquilo estava em mim: Então é isso,, eu preciso fazer um trabalho sobre isso! Não é falar sobre eles, nem falar sobre medidas sócio-educativas, nem falar sobre o lugar, eu quero falar sobre o que isso me transformou, meio que um processo de autobiografia e auto-ficção e aí resultou nesse espetáculo de dança, performance contemporânea, chamado Para Menores.
Você passou por esse projeto no Sesc, Leitura de Movimento?
O Leitura de Movimento é um projeto que vem acontecendo, produzido pelo Sesc, que faz uma residência artística com os artistas locais, bailarinos, atores, com um facilitador que vem com uma proposta de processo criativo, de como ele executa seu processo criativo. Quando entrei no Centro Sócio Educativo, que eu estava naquela crise existencial, tinha parado de dançar, mas como eu participava todos os anos do projeto quis participar mesmo assim, mesmo que não saísse um espetáculo. Daí eu fiz e não consegui criar nada. Um tempo depois é que fui conseguir compartilhar meus processos e criei um espetáculo que se chama Selfie, que até circulou no Amazônia das Artes, foi selecionado para circular no Amazônia das Artes. Aí falei, “bom, já sou bailarina de novo, já posso continuar”. Mas nisso já veio a vivência lá do Centro Sócio Educativo que foi amadurecendo e fui me adaptando a essa nova realidade e aí junto com o projeto em 2016, quando veio o Jorge Alencar da Bahia trabalhar com a gente, me despertou essa vontade de mostrar na cena, na ficção, mostrar essa vivência. Então as ferramentas que o bailarino trouxe me levaram para essa construção desse corpo contaminado, afetado por esses adolescentes.
Daí nasceu o espetáculo Para Menores?
Sim, foi durante o processo que nasceu o espetáculo. O bailarino vem com algumas estratégias metodológicas. A gente não gosta de falar muito assim nas artes, mas trouxe algumas ferramentas para a criação. A criação de gestos, ou cenas, ou textos, e dentro desse processo, os gestos que eu estava construindo tinham essa referência dessa vivência. Então, quando transformava isso em texto, em roteiro de trabalho, era sobre esse corpo que estava naquele lugar. Então, partiu desse projeto Leitura de Movimento, em 2016, com o bailarino Jorge Alencar.
Então o espetáculo pegou corpo e cresceu…
O espetáculo já tem uma estrutura, já é apresentável, é preciso dizer que um espetáculo está sempre em construção. Ainda tem algumas brechas que a gente quer melhorar, quer trabalhar todo o processo de criação, mas ele vem criando esse corpo desde 2016. A gente fez um primeiro experimento no segundo semestre de 2106. Em 2017 a gente fez outros experimentos na estrutura cênica, relação com a plateia, a própria atuação, como que eu fico em cena, etc. Agora nesse ano (2018) ele já tem um corpo bem estruturado na cena e já tem uma grande chance de sair por aí…
Você já está viajando com ele, não é?
Isso! A gente fez uma apresentação em Curitiba no Fringe, que é o 27° Festival de Teatro , que está se abrindo também para outras linguagens, performance-teatro, dança-teatro. Nos apresentamos nos dias quatro e cinco de abril.
Como você vê a participação das mulheres nas artes?
Pensando no meu lugar como bailarina e como professora de balé, que foi onde eu comecei a atuar na dança, eu acho que até o machismo me deu uma condição privilegiada. O professor de balé tinha muita dificuldade de tocar no corpo da bailarina, não podia, você não pega por que você é homem. Então, acaba que essa cultura machista me colocou numa condição boa. É até ruim falar isso, mas todo mundo fazia balé com a tia Elka porque as meninas eram de família cuiabana. Isso foi me agregando uma convivência com as pessoas e dando a possibilidade de me colocar como artista, mas não por ser mulher, no sentido machista, mas por que eu produzo, eu tenho uma produção com a dança em Cuiabá.
Como você vê a afirmação da mulher na sociedade?
Com certeza é mais firme, até por conta dessa atuação mais firme no teatro, na literatura, na música, nas artes em geral e isso vem crescendo. Existe um movimento, não formal, de reuniões dessas mulheres para pensar como ganhar esse mercado de trabalho, como ganhar financeiramente em cima disso, como se promover nesse mercado. Isso tem melhorado bastante com esse cenário feminista e feminino.
Como que você avalia o Leitura de Movimento e como você se coloca no contexto do projeto?
Eu participei em todas as edições, como artista. Em 2017 eu tive a felicidade de ser convidada como mediadora. O projeto tem um processo total de compartilhamento de formas de criar a cena, criar o gesto, criar movimento, texto, a dramaturgia. A gente não impõe, sempre é compartilhado, por exemplo, eu faço dessa forma, proponho uma atividade, vamos ver o que sai desses corpos e isso é muito produtivo por que as outras pessoas conseguem entrar nesse mesmo processo, compartilhar dessa mesma forma e você cria uma rede de conhecimento. A gente consegue mostrar que criar não é um bicho de sete cabeças. É simples, é treino, é compartilhar ideias, é experimentar, peneirar, resumir, e aí o corpo consegue produzir sem tanto sofrimento, por que quando você faz sozinho numa sala de aula, nada acontece. Quando você compartilha, a coisa acontece mais rápido. Isso impulsionou vários trabalhos aqui no Sesc Arsenal, não só o Para Menores, mas toda uma produção de dança e teatro que vem acontecendo aqui, com trabalhos que vem participando de indicações para o Amazônia das Artes, Palco Giratório, muitos desses espetáculos vêm do projeto Leituras de Movimento.
O que você absorveu disso no seu trabalho?
Como bailarina alimenta no sentido de ampliar as formas de fazer. Como artista essas conexões, esses intercâmbios fazem você pertencer a uma rede de artistas em nível nacional. A partir daí, você tem contatos com artistas em todo canto do mundo, Norte-Sul, Leste-Oeste e você cria também condições de mercado, de estar nesses lugares, de intercambiar os trabalhos a nível de apresentações. O projeto permite também você estar nesses lugares.
*Colaborou, Fabrício Chabô.