Ontem, fui agredida em sala de aula por um aluno de 14 anos. Não fui agredida verbalmente, não. Fui agredida psicologicamente por um menino de ficha suja, que tentou me amedrontar de todas as formas. Depois, fui agredida fisicamente por um objeto que atingiu de cheio as minhas costas. Ardeu. Aliás, arde sempre que me lembro. Ardeu minha dignidade e meu orgulho. Ardeu meu sistema nervoso lutando pra se controlar, manter a calma e continuar impassível e sem demonstrar medo até o fim da aula. Ardeu também quando, trêmula, entrei na sala dos professores e, no meio dos ruídos em volta, eu chorei de cansaço. Continuou ardendo à noite, entre um cochilo e outro, todas as vezes que eu me lembrava do rosto daquele menino, me olhando, desafiador. Mas o que mais me ardeu, não foi o objeto (leve) que atingiu minhas costas. O que doeu foi ter acontecido comigo, logo eu, cidadã de bem.
Eu que, nos primeiros anos da pré-escola, tinha que ser convencida a ir estudar, pois tinha medo de ficar sem minha mãe. Eu que ficava olhando de dentro da sala pro lugar onde ela estava sentada, lá fora, esperando que a aula terminasse pra me levar pra casa. MAS LOGO EU, que era levantada todos os dias pela voz suave da minha mãe, ou forte do meu pai, pois ambos pulavam cedo da cama pra ir trabalhar. Eu que sempre saí de casa bem alimentada: pão, manteiga, café preparados pelo adulto responsável. Na lancheira algo feito com amor e capricho. Atingida por esse menino, que nunca teve quem insistisse pra que ele fosse pra escola, que nunca teve pai ou mãe que lhe explicassem porque era preciso estudar, acordado aos berros e aos safanões, se enfiando no uniforme (amarrotado e roto, doado por outra pessoa, por vezes furado e manchado), pensando que pelo menos às 09:00 da manhã ele teria o que comer.
Logo eu, cidadã de bem, que aprendi com muita naturalidade a ler e a escrever. Eu que, quando os pais não tinham tempo pra ensinar o dever, era mandada pra escolinha de reforço (particular) e estava sempre entre os melhores da turma. Atingida por esse garoto, que sentia o estômago rugir enquanto tentava aprender o alfabeto, sentado num canto da sala, escondido, pra que ninguém visse seu chinelo gasto e suas roupas puídas e encardidas. Esse menino que, logo que cresceu, descobriu que, já que não estava conseguindo fazer nada certo, era no errado que conseguiria se sobressair. Esse menino que subia no telhado da escola deixando todo mundo maluco e, de repente, tinha a atenção (aquela, que sempre desejara dos pais), toda pra si.
MAS POR QUE ENTÃO, LOGO EU SER ATINGIDA ASSIM? Eu, tão cidadã de bem, que tantas vezes vi meu pai ir dormir às 3:00 e acordar às 5:30, porque tinha que trabalhar e nunca faltava serviço. Eu que via minha mãe debruçada por horas em cima de um livro, enquanto meu pai se debruçava sobre uma máquina de escrever. Eu que tive a infância permeada pelas poesias da Arca de Noé e sempre tinha quem me explicasse aquilo que eu não conseguia entender, e dava ouvido às minhas perguntas mais loucas de criança. Atingida por esse menino que via, diariamente, o pai trôpego e bêbado, já às 7:30 da manhã. Que a mãe não pôde ajudar a escrever seu nome, pois era analfabeta. Esse menino que, quando se atrevia a perguntar alguma coisa, tinha uma resposta dura como prêmio à sua curiosidade: VAI CAÇAR O QUE FAZER, MENINO! PARA DE COLOCAR CARAMINHOLA NA CABEÇA!
Esse menino que a primeira vez que saiu da cidade, foi ao cinema e entrou num Shopping Center, o fez devido a uma excursão da Escola. Os profissionais pensaram muito antes de levá-lo, com medo que ele quebrasse alguma coisa por lá (como fazia frequentemente com as carteiras da sala de aula, quando a raiva e a rejeição abundavam a ponto de enlouquecer). No dia de ir, pensou muitas vezes em desistir, pois só tinha um chinelo e sua camiseta de uniforme estava com um rasgo. A sorte foi que alguém se compadeceu dele e resolveu emprestar uma camiseta nova que estava guardada no armário. Sorte ou mais constrangimento? Mais tarde ele não saberia dizer. Esse menino, atingir logo a mim, uma pessoa de bem! Que sempre assisti Aladdin 40 vezes na infância, fazendo uma conta imensa na locadora. Que pendurei uma das minhas 10 chupetas na árvore de Natal de um shopping, quando resolvi parar.
Esse menino que viu o pai espancar a mãe, os irmãos e sentiu também as dores do soco em seu próprio corpo, e muito cedo aprendeu a falar com fluência a linguagem da violência. Esse menino, que cedo experimentou drogas e também cedo começou a vender pra tentar, no mínimo, comer o que tinha vontade e comprar um tênis legal. Que escutou a vida inteira, todo mundo à sua volta dizer: “Esse é caso perdido”, “Esse aí é problema”, “Esse vai ser bandido”. E, como achou que bandido era a única coisa que talvez pudesse ser com excelência, entrou pro mundo do crime ainda uma criança. Também cedo conheceu o Conselho Tutelar, a pasta base de cocaína e apanhou da polícia. Pedras nas mãos eram as únicas coisas que ele sabia oferecer, tendo sido as únicas coisas que lhe haviam sido dadas desde sempre.
O que me arde é pensar no que mais esse menino pode ter vivido até o momento exato em que convergimos na mesma sala de aula em que eu, tão bem intencionada ensinava os verbos regulares do inglês, enquanto ele passava por uma crise de abstinência e raiva, (forçado que estava sendo a frequentar a escola). O que mais aconteceu entre tudo isso e o momento em que ele me arremessou algo? Eu, TÃO CIDADÃ DE BEM. EU, que no início da carreira como professora (muito menos madura, menos experiente e empática) tinha também desenganado esse menino. E que agora, anos depois, me encontrava de novo com ele, na esperança de reescrever um novo final.
O que me ardeu e está ardendo até agora, é o rosto desse menino criança. É eu não ter podido na hora e nem saber agora, que ele se foi (mudou de cidade depois de mais uma detenção) como fazê-lo acreditar nele mesmo, com a mesma força com que quero acreditar. É não poder apagar, com minha parca bondade e tentativa ínfima, os milênios de traumas. É não conseguir sequer imaginar quantas foram suas noites mal dormidas, em que o calor coçava seu corpo febril e a garganta queimava, sem que ninguém lhe oferecesse um copo de água morna. O que me arde são todos os dias de frio em que ele faltou à escola por não ter um casaco. É o constrangimento todas as vezes que, teimando, ele foi, e ouviu alguém dizer, ao ver sua pele arrepiada: “Menino, você não tem frio?”, sem notar que o esforço era mais pela merenda ou pra sumir do lar sujo e sem paz. O que está ardendo são minhas palavras do passado, ecoando nos seus ouvidos e se juntando ao coro que lhe afirma diariamente: você não vai ser ninguém. Arde. Logo eu, tão cidadã de bem.
*Isabela Bonilha - Formada em Letras Português e Literatura pela UFMT, professora, escreve desde os oito anos. Tem um blog que nutre desde os 13: Um Vagabundo e
as Estrelas. Apaixonada por arte, gosta de pintar, costurar, customizar e
alterar coisas ao redor, mas se encontra mesmo na escrita. Seu cenário é Guiratinga,
na qual nasceu e foi criada.