Assim como o próprio ser, a multiplicidade do trabalho da artista traduz o ponto de vista de muitos personagens escondidos, mas que buscam no fundo do âmago o reconhecimento merecido.

Quando falamos da vida, geralmente refletimos sobre como deveríamos ser, nos comportar, falar, agir, pensar… e nessa reflexão, pouco se discute se todo esse conteúdo se encaixa com as nossas verdades, sonhos ou perspectivas de vida.

Até que naquele dia cinzento, descobrimos no improvável que é possível ser maior e múltiplo, mais do que possamos imaginar. Naquelas quatro paredes, em frente à TV, ou acessando um site qualquer, gatilhos de luz nos motivam a levantar da cadeira para brilhar em cima dos palcos.

Assim se descobre que nada é por acaso. E que mesmo nos momentos de dor, solitude, e até nas tentativas de tirar a própria vida, é possível sorrir três vezes mais. E, ainda, fazer com que isso transborde em outras pessoas – que um dia se afogaram nas mesmas águas que você – para ver esperança na sua coragem.

Ela, Luisa Lamar. Travesti, escritora, diretora, redatora, compositora e musicista. A mesma que ousa por simplesmente andar pelas ruas da cidade, ou subir em diferentes palcos, da vida e da internet, estende essa ousadia nos ritmos musicais que passeiam do hip hop ao lambadão profundo.

Vinda de uma família predominantemente formada por homens, tinha sua mãe como única referência feminina. Até que tristemente, sua provedora se despede desse plano ainda no início da sua adolescência. Fato que a impulsionou a se debulhar na tristeza interna, mas que lhe rendeu bons aprendizados futuros.

Neste período, quando ela, que ainda se descobria como travesti, viu na solidão o seu porto seguro para tentar compreender as mazelas da vida. E junto a seu pai, mudou-se para Chapada dos Guimarães, lugar em que caiu em isolamento precocemente (antes mesmo da pandemia), para tentar se encontrar nesse mundo tão diferente.

“Eu acabava ficando muito solitária no computador, sem muitos amigos e passei muitos anos da minha vida com pouco contato social. A partir da internet, fui tendo acesso às musicalidades, música pop, rap e tudo mais. Fui ter acesso também, sobre o que era a transsexualidade, a generilidade, a travestilidade, dentro de uma perspectiva que não era jocosa”, lembrou.

Em meio às pesquisas em frente ao computador, viu outros mundos possíveis. Daqueles inimagináveis. “Quando eu conheci artistas que admiro, por exemplo, como a Linn da Quebrada e as Bahias e Cozinha Mineira, tive surtos de ansiedade, que não conseguia sequer imaginar que aquilo era real”, relatou.

A partir desse contato com os outros ‘eus’ na mídia de grande massa, ela começou a acreditar que era possível derrubar barreiras que, até então, pareciam intransponíveis. Assim, novos trabalhos começavam a nascer. E da mesma forma que a autora, não tinham compromissos em cumprir protocolos de ritmos para se alinhar a algum tipo de identidade com o mercado.

Trabalhos multifacetados

Na música, foram produzidos três trabalhos: iWISSu, #LAMBATRANS e CXXIV, ou Comando 24 (que ainda está com o nome em estudo, por receio de possíveis facções com o mesmo nome). “É uma referência ao nome faccional. Mas a ideia dessa mixtape é trazer a revolta travesti. De trazer preposição de gangue de travestis, onde a gente vai mostrar para os homens, que nos mataram durante tantos séculos, como é sentir isso na pele”, explicou.

Em #LAMBATRANS, ela cita o irmão, o músico Paulo Monarco. Na época, o artista estava em laboratório com um projeto ainda não lançado chamado “Abriram-se as veias”, que misturava ritmos regionais com a MPB. Nesse contexto, o irmão mais velho sugeriu esse mesmo caminho, com mix de estilos.

“Eu fiquei com aquilo na minha cabeça e acabei escrevendo a música que é o #LAMBATRANS. Depois de escrever, vi que tinha ficado legal, mudando as letras também, porque naquela época eu era muito nova e sofria por macho. Até escrever o álbum inteiro”, disse.

Já em iWISSu, Luisa conta que o projeto nasceu com a ideia de trazer o propósito de saudade, mas do autoamor. É uma brincadeira com a palavra saudade, que não existe no inglês americano. […] esse EP, busca traçar essa trajetória dessa pessoa só, sem amor para si mesma. Eu acredito que se a gente não pode se amar, como diabos você vai amar outra pessoa?”, reflete em referência a RuPaul, uma das maiores drag queens do mundo.

Nestes três trabalhos, a artista também exalta a qualidade de ritmos e letras, que trazem para a realidade das travestis da Capital mato-grossense. Além disso, ela chama a atenção de patrocinadores, para ajudá-la a lançar cada uma das composições que prometem mexer com o cenário musical local.

Viver da arte e Deise

Viver da arte pode parecer algo magnífico aos olhos de quem vê de fora. Mas enfrentar as adversidades de um país de educação ferida, onde artistas só são considerados como tal se aparecerem em mídias da grande massa, faz cair uma reflexão dolorosa sobre como sobreviver deste trabalho. E isso, pode ser ainda mais difícil ainda para a população trans.

Com 99% delas tendo se prostituído alguma vez na vida, essa realidade também chegou à vida de Luisa, que relatou ter feito este tipo de serviço para o próprio sustento. Eu estou tentando começar a viver da arte, mesmo que eu já esteja desenvolvendo uma carreira há vários anos. Mesmo assim, eu não consigo”, conta.

Ela ainda ressalta que tem o apoio da familia. Uma raridade, em se tratando da comunidade trans. “Se eu não tivesse meu pai me ajudando financeiramente, ou estivesse fazendo programa algumas vezes, eu não estaria viva. Se fosse viver só da arte, eu não estaria viva”, refletiu.

E dentro dessas reflexões profundas, de ser o que é e de encarar a realidade, nasceu Deise. Um curta-metragem que está prestes a iniciar as gravações, contemplada pela lei Aldir Blanc.

Ela explica que a personagem central do curta discute toda a representatividade da identidade trans. A partir de inspirações que andam por Aventura Profana, Jup do Bairro e Alice Guél, a artista que atua como redatora e diretora do projeto, conta que o curta fala sobre o milagre em suas diferentes facetas.

“Deise é esse ser que faz milagres reais, porque a ideia de milagre não é só uma intervenção divina comprovada ou incomprovada cientificamente, mas um milagre também é conseguir superar aqueles 50% ou 90% de chance de dar uma merda”, disse.

E ela completa: O milagre é eu, Luisa, conseguir ser uma travesti na arte hoje. Um milagre para mim é a Linn da Quebrada ser contratada pela Globo, ter participado de uma roda de conversa com o Lula, que é algo que eu jamais imaginei que aconteceria”, destacou.

Com previsão de ser lançado em 2022, além do elenco ser de maioria LGBTQIA+, a produção do curta também conta com boa parte dos profissionais trangêneros. Uma quebra de estereótipos do showbiz. “Aqui (em Cuiabá) a gente vê uma dificulldade de encontrar mulheres cis, quanto mais travestis, pretas. Então, a gente vai ocupar esse lugar, sim. A gente vai fazer milagre, ensinar e aprender também, para que a cada dia possamos ocupar os espaços que merecemos ocupar”, finaliza.

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Simone também é Sika. Jornalista e artista visual (não necessariamente nessa ordem). Ex-cinéfila que gosta de estudar música e seus personagens, assim como outras vertentes da arte. Feminista, mistura de asiática com paraguaia e cearense, natural de Rondonópolis (MT). Mora em São Paulo, mas leva Cuiabá sempre no coração e no 'djeito'.

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