Por Ramon Carlos

Estirado como um tapete da porta da frente

Aqueles de frases: “Bem vindo” ou “Limpe os pés”

Personalizados com qualquer que seja a mensagem

Ou intenção, por trás de um objeto imóvel naturalmente

Que quase sempre está com uma ponta dobrada

Por alguém que tropeçou e nem teve o cuidado de desdobrar

Ao chegar à porta

Ou simplesmente fora virado em partes, pelo vento

Ou por um animal curioso, fustigado e sem memórias

Um tapete duro e muitas vezes sem apresentar sua cor primária

Assim permanece Jonas Bello

Não na porta da frente

Algumas analogias como:

Não sentir-se bem vindo, muito menos limpo ou sem brilho

Até sinalizam um pouco suas lembranças

Mas isso nada tem a ver com sua posição atual

Em algum local que não convém agora revelar

Encontra-se possível e cheio de vislumbres

Embora mantenha em suas mãos um pedaço de papel

Que o conteúdo também não convém revelar nesse momento

Articulando-se capacitado e febril nos movimentos

Desdobra-se pelo chão, fustigado pelas nuances

Desliza como lesma com sal nas ancas

Prevê que precisa levantar o quanto antes já imaginara

E levanta

Estupefato pela energia que suspeitava ter perdido

Positivo, esboça uma corrida até a porta da frente

Abre-a com cuidado, e em cima de seu tapete

Personalizado com a seguinte frase: “Vim do futuro e não existo”

Revela-se uma pequena folha cinza grudada

Cheia de pequenos buracos

É domingo, e as sonoridades pra fora da porta

São as mesmas de qualquer outro dia

Observa seu vizinho ao longe

Indo em direção ao único mercado aberto por perto

Seus olhos e sua respiração combinam-se

Como se fosse um recém nascido

Ao perceber o lagarto imóvel a três metros de distância

Olhando-o como ameaça, ou um simples objeto móvel

Decide descer as escadas e ir até o mercado também

Encontra seu vizinho pelo trajeto

Cheio de sacolas e ar indiferente

Mesmo assim, é surpreendido pela fala dele

“Você é o que veio do futuro e não existe?”

Engasgado pelo infortúnio da indiferença que sempre preservou

Sente-se obrigado a parar e responder

Claro que não tem uma resposta clara e confiável para tal questão

Afinal, considerava uma conjectura redundante

Sem nenhum aspecto primoroso

“Vim do futuro e não existo, sou eu mesmo”

“Muito bem, eu venho do passado carregado de sacolas. Vi seu tapete quando fui até sua casa oferecer uma rifa”

“Ah!…Não comprei?”

“E o que importa? Quem ganhou foi o dono do mercado”

“Ofereceu antes para ele ou para mim?”

O homem deu de ombros e seguiu em frente

Ao entrar no estabelecimento, vai até o final do único corredor

Encontra os refrigerados, com seus preços úmidos e de difíceis distinções

Agarra um pequeno pote amarelo e um pacotinho embalado a vácuo

Segue até o caixa, onde é recebido por certo sorriso cativante

Inclui algumas balas e chocolates na compra

Enquanto ouve sonoridades musicais baixas que surgem por detrás do balcão

Percebe que está pisando em um relevo macio

Um tapete, talvez, mas como por inaptidão

Recusa-se olhar para baixo

E retorna pra casa

Supondo estar com uma cara sonolenta

A mesma adquirida e estabelecida durante anos

Mas de tal forma fora amadurecendo

Que em certos momentos sente-a cravada em todos os ossos faciais

O lagarto não está mais ali para encará-lo ameaçadoramente

Sobe as escadas como se estivesse pisando em pedras molhadas de uma correnteza

Seu tapete tem uma dobra, a folha cinza cheia de buracos se foi

Lê: “Vim do futuro e nã”

Com um leve toque, deixa o tapete corretamente posicionado

Coloca as compras sobre a mesa da cozinha

Intrepidamente e com os nervos fervorosos

Retira o pedaço de papel do seu bolso com muito cuidado

Até porque, está com ele há no mínimo cinco anos:

 

Para J.B

 

Começo, verdadeiramente

A cravar a existência de um Criador

Através das mais simplórias constatações

Acredito quase 100%

Numa totalidade transparente e segura

Que de outra forma

Não haveria possibilidade de termos

Um inferno assim,

Tão perfeito

Com uma ressalva indispensável

Para tal afirmação:

Criou de luvas

 

Marchando sobre ferraduras

Ou apenas alegando insanidade poética

O crime demorou sete anos para ser finalizado

Notícia um tanto confusa

Que chegou de helicóptero

E pousou no cemitério dos campos vastos

Onde adultos brincavam de acordar fetos feitos de açúcar

Pneu estourado pelo tiro da espingarda de plástico

Metros abaixo de onde o fusca vermelho fora abandonado

Um senhor grisalho e de terno mostrou seu crachá, que dizia:

“Vim do futuro e não existo”

 

Jonas Bello guarda o papel com a precisão do universo

Esquece dos refrigerados sobre a mesa, e suavemente

Com um leve sorriso desbotado

Volta ao seu lugar preferido

E desaparece

Mais breve que o céu

 

O grande homem atropelado está sentado no meio-fio

Encontrando qual a ferida mais quente e intocável

Todos aplaudem sem as mãos

Assovios silenciosamente ensurdecedores

Por que seria ele o protagonista do mundo?

O grande homem atropelado é relaxado

Cospe liberdade nas algemas dos presos, sem as mãos

Ajudem o grande homem a morrer de ternura

É a lacuna dos privilegiados de santidade

O grande homem atropelado quer andar na velocidade errada

E salvar seus castigos para devorar em casa

Com mel e fel

O grande homem atropelado foi transformado em migalhas pra porcos

Grotesco, mais que enfiar o dedo em cu de galinha

Mas o grande homem guarda a luz, sem as mãos

Que é toda colorida para daltônicos

O grande homem atropelado não expõe suas fraturas pra cegos

E ele caminha para o norte do sul

Sabotando a bússola dos sábios, sem as mãos

E por mais atropelamentos propositais

O grande homem atropelado permanecerá no meio-fio

Às vezes

Só pra ver o infinito passar

Um pouco distante do chão

 

Ramon Carlos é coautor do livro estrAbismo (Editora Viseu, 2018). Escreve no site: 
www.estrAbismo.net. Tem materiais diversos espalhados em revistas como: 
Mallarmargens, LiteraturaBr, Amaité Poesias & Cia, InComunidade, LiteraLivre, 
Subversa, Philos, Escambau, Bacanal, Ruído Manifesto, Literatura & Fechadura, 
Jornal Plástico Bolha, A Bacana, Cidadão Cultura e Olho Vivo.

 

 

 

 

 

 

 

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