É interessante falar sobre a Teoria dos Gêneros de Aristóteles para alunos do primeiro ano do ensino médio. E o faço, regularmente, a cada ano, em minhas aulas no Instituto Federal de Mato Grosso. Optei por voltar a trabalhar com essa clientela por ter a preocupação de formar leitores desde o início dessa nova caminhada que é o ensino secundarista.

Quando leio obras que buscam a tênue linha que os separa (os gêneros) me sinto diante da possibilidade de ressuscitar alguns preceitos da Antiguidade e contrapor outros ao campo das experimentações e possibilidades. E é disso que hoje quero falar. Na semana em que lanço meu novo romance, Xibio, na I Festa Literária do Colégio Máxi, que vai de 23 a 25 de maio e no Arsenal, no dia 25, próxima sexta-feira; junto a Tereza Helena farei uma discussão acerca do experimentalismo e escrita híbrida de Aline Bei, no Clube de Leitura do SESC, na terça, dia 22.

Aline Bei

Aline é do tipo que facilita essa interface e em seu romance de estreia O Peso do Pássaro Morto estamos frente a um hibridismo da melhor qualidade entre poesia e prosa, sem necessariamente os disfarces e truques da prosa poética baudelaireana, repleta de hermetismos líricos no auge do capitalismo. Respaldada pela criatividade fomentada por Marcelino Freire, essa jovem autora surpreende pela maturidade de uma escrita virtuosa e preciosidade na ocupação do espaço em branco da página, estética desenvolvida de maneira transcendente; algo como a mística mistura de Bashô e Mallarmé na qual, como ela própria nos diz o tratamento da página equivale a um palco em que a palavra se veste com entonações próprias ao desrespeitar a pauta, a linearidade de uma escrita em prosa (tradicional).

A obra passa pela linha do tempo de uma mulher e seus contratempos aos 8, 17, 18, 28, 37, 48, 49, 50 e 52 anos, fios condutores de uma narrativa na qual se enovelam sentimentos ambíguos de amor, de esvaziamento, de um lirismo contido que não se expressa, mas corrói. A ideia cíclica que de maneira sub-reptícia se insere na malha discursiva vai mesclando imagens pueris com certo amadurecimento precoce e dinâmico com em uma cena na qual “numa tarde de pudim perguntei pro seu luís por que rádio chora só nessa rua comprida” (p. 13).

Grávida de um estupro, a menina, agora repleta de enfadonhos sofismas acerca do papel da mulher, experimenta um choque de realidade materializado em forma de narrativa

“é preciso contar devagar pra ele

… sobre a terra,

o futuro

espera numa concha (p. 62).

Passei cinco anos de minha vida em Cabo Frio, no Rio de Janeiro. Conheci muitos argentinos e morei junto a um casal uruguaio por um ano. Quando um portenho quer xingar alguém, utiliza-se, via de regra, da expressão “concha tu madre”, numa alusão explícita à genitália feminina da mãe. Aline Bei, com um narrador martirizado pelas contingências da vida coloca o futuro em uma concha, espaço côncavo para o qual convergem todas as expectativas de um filho indesejado. A ideia de continuidade, de um ciclo que não se fecha e que não permite a aproximação entre mãe e filho se coloca em forma de reflexão, aos 28 anos:

… e o pai do lucas

dentro dele

e o pai

do lucas

dentro de

mim (p. 85).

Mantenho aqui a diagramação da autora, o formato de uma prosa escorrida que se parece com a versificação tradicional para os padrões pós-poesia marginal. A linha do tempo vai se espaçando e a mulher de 37 anos, com o filho às vésperas de completar seus vinte: “… a minha mão na cara do lucas, a mão do Pedro na minha cara,” (p. 97). Os nomes próprios todos em diminutivo, e a ideia do ataque de seu estuprador, pai do próprio filho e de seu gesto repetitivo de estapear o menino repetindo o gesto de violência que a aproxima do agressor, afastando-a do filho dele e seu. Aos 48 pensa no que poderia ter feito e não o fez. Não que devesse, mas podia. Não o quis e se tortura, enfim:

…    acho também

que o lucas não precisa mais de mãe

nenhuma,

nem eu do filho que

não matei.

pensei por nove meses vou matar

mas

 

não matei (p. 124).

O final do livro me lembra Clarice Lispector e Padre Vieira. A Mulher que matou os peixes, de nossa bruxa e a ideia de que somos peixes diante do Sermão da Montanha. Doutrinados, apaniguados do discurso do opressor, em nome de Deus. De um Deus.

parecia mentira que a sua Mãe pra sempre

não estava mais

viva

quando um homem chegou

de buquê.

disse bom dia,

o lucas respondeu

 

– bom dia.

 

e ficou com vontade de perguntar

quem era.

(p. 165)

 

REFERÊNCIAS

BELI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, 2017.

 

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

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