Isabela Bonilha

Histórias que se cruzam na fronteira surreal (mas tão real) da justiça brasileira.

Em 18 de outubro de 1979, Raul Fernando do Amaral Street, mais conhecido como Doca, era julgado, pela primeira vez, pelo assassinato (já confesso) da socialite Ângela Diniz. Doca havia disferido 4 tiros na namorada após uma das frequentes desavenças entre os dois.

Doca Street sendo julgado

Três anos depois de disparar 4 tiros que desfiguraram a moça (linda, branca, rica e famosa, por sinal), fugir do flagrante e se apresentar (pasmem, não à polícia, mas a um canal de televisão da época) Doca foi condenado por HOMICÍDIO EM LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA, o que lhe deu o direito de suspensão condicional de sua pena de reclusão por dois anos. Em outras palavras: o assassino que confessou ter matado Ângela saiu do tribunal em liberdade.

Ângela Diniz

Após horas de julgamento em que a ré do caso mais parecia ser Ângela, que teve a vida e a moral longamente discutidas e postas à prova por diversos homens e julgadas por um corpo de jurados de maioria masculina, chegou-se à conclusão de que Doca não poderia ter tido outra escolha a não ser matar quem ele dizia o tempo todo ser o amor de sua vida.

Ao lado de fora, o esperava uma torcida que o recebia de braços abertos, como um herói de seu tempo. Cartazes desejavam força e sorte. Debates na televisão por vezes causavam séries de enxovalhamento à imagem de Ângela. O podcast Praia dos Ossos, idealizado por Branca Viana, conta a história deste crime, que mobilizou o país em sua época e, por sua vez, desencadeou uma série de fatos e reações que desaguaram nas primeiras movimentações feministas no Brasil.

Embora o princípio de legítima defesa da honra jamais tenha feito parte de nenhum Código Penal ou lei brasileira, era um argumento constantemente utilizado em tribunais país afora para justificar crimes que ainda não recebiam o nome de feminicídio.

41 anos depois, mais especificamente nesta semana, a sentença dada ao estuprador da modelo Mariana Ferrer parece chocar o Brasil: estupro culposo, isto é, aquele em que não houve intenção de estuprar. André de Camargo Aranha saiu de um processo com provas físicas mais que suficientes para a condenação, na condição de inocentado. Imagens repulsivas de Mariana sendo humilhada por advogados correram a internet na velocidade da luz e a pergunta que me faço neste momento é: o que mudou?

O que mudou entre a morte de Ângela Diniz e o estupro de Mariana Ferrer – ambas modelos, ambas brancas, ambas bem relacionadas – o que mudou?

O que mudou se, em pleno ano de 2020, homens se reúnem em sabatina para discutir um crime sexual e deslegitimar a vítima? O que mudou?

O que mudou se, embora a gente se indigne por ABSOLUTAMENTE TODAS as mulheres, sabemos também que a estas só se deu a devida visibilidade devido a suas condições que, por mais que se se lute, continuam sendo desfavoráveis?

Enquanto uma Ferrer, com todos os seus privilégios, provas, advogados, ainda é humilhada em vídeo conferência gravada e assistida pela justiça, outras Silvas, Pereiras, Joanas, Marias nunca sequer tiveram voz para denunciar.

Da morte de mulheres, a geração de feministas dos anos 70, fez a derrubada do argumento de Legítima Defesa da Honra (pelo menos, em teoria). Em 2020, beira ao surreal que um juiz possa criar um novo termo que passa ao longe da lei: o estupro culposo.

Em minha mente de mulher quase balzaquiana, as histórias de tantas mulheres se entrelaçam. Vi, alguma vez, em algum lugar, que, se o mundo caminhar 0,1% numa direção melhor, já é uma mudança.

Pinterest Instagram photo by Mariana Ferrer

Devemos ser todas e todos por Mariana. Nossas mães, filhas, irmãs, netas não podem se tornar ainda mais vítimas. Ainda mais rés. Não em legítima defesa da honra da masculinidade tóxica. Não à defesa do indefensável.

 

Isabela Bonilha é professora e escritora.

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