Seu nome é Cida Pedrosa e nasceu em Bodocó, meio caminho entre Ouricuri e Exu, em Pernambuco. Autora de vários livros trabalha atualmente a divulgação de As Filhas de Lilith e Claranã. É o que fará no próximo dia primeiro de novembro pelo projeto Arte da Palavra, do SESC, em Cuiabá.
O primeiro é um projeto gráfico com ilustrações de Tereza Costa Rêgo e design de Jaíne Cintra, contendo um DVD produzido a partir de recriações dos poemas impressos, espécie de abecedário feminino em que as vinte e seis letras representam perfis femininos que se complementam, contraponto à moldura patriarcal. Com bastante propriedade, ao final da obra as idealizadoras do projeto “Olhares sobre Lilith” Alice Gouveia e Tuca Siqueira assinam uma espécie de posfácio em que afirmam que
A liberdade no leito de cada verso exprime um ritmo lento que desnorteia a captura de sentido em uma forma quase líquida que o verso apresenta. O derramamento contido de um lirismo ao avesso vai aos poucos criando outras formas, enovelando sentimentos contraditórios que se complementam. É o cenário que busca trazer para o leitor de poemas aquilo de que Cida tem como certeza:
A mulher sempre esteve presente em minha poesia em conteúdo e forma. Está viva no recorte de classe, nos gritos de denúncia contra a opressão machista, no erotismo rebelde e despudorado, nas dores e lutos, nas risadas e celebrações, nos silêncios e entrelinhas (p. 10).
Arrisco a trazer para você fragmentos dessa onomástica aleatória, embora ordenada, para forjar certa linearidade aparente na construção de um caminho seguro, pavimentado pelos versos livres e brancos sepultados sob a forma de matéria viva entre gravuras que vão detalhando um universo interior (os grifos são meus).
DIANA
o jogo de luz e sombra
não camufla mais ninguém
ELISA
sempre quis fazer amor com deus
MELISSA (ou seria Milena?)
sabia-se mulher desde a infância
OFÉLIA
montou casa aos 21 anos
e já deitava com o namorado aos 15
NELY
quando completou 70 anos
teve direito a bolo caixinhas chapeuzinhos docinhos
e uma vela enorme em formato de pênis
ÍVIS
vamos falar da vida
rir da morte
ou do vizinho
OFÉLIA
exemplo de mulher resolvida
conseguiu tudo o que quis
Cida rebate na ferida que abre ouvidos para a escuta que vem do mundo, na natureza exuberante que arrodeia a Serra do Araripe em sua grandiosidade mundana. “me emprenhei de sons que me consomem até hoje” (PEDROSA, 2015, p. 16). Encontrei-me em muitos versos, ao perceber a presença de mote de Antonio Marinho, que conheci em janeiro deste ano na festa do seu avô, Lourival Batista, em São José do Egito, no Pajeú das Flores (PE). E em Jorge Filó, Chico Pedrosa, Maviael Melo, Lirinha, Jó Patriota, dentre outros que contornam com seus motes o empoderamento literário de Cida.
A lira é a seta
(p. 27)
Verás que és pó
E frágil, poeta
Sem rima e sem meta
Perdido no branco
(p. 28)
Eu sou tua seta
Certeira e liberta
Janela aberta
Pra um livre pensar
(p. 31)
A janela do livre pensamento pode ser uma representação simbólica do universo patriarcal, combatido pela seta, quero dizer, a lira. E de Lirinha vem o mote: essa noite eu retalho o mundo inteiro/ Com a peixeira amolada do repente.
O meu verso cavalga pra além-mar
Veste jeans, ouve rock e cantoria
Quer viver misturando a poesia
Espalhando improvisos pelo ar
Pois o fim do poeta é navegar
Por riacho revolto e inconsequente
Carne e verbo real e confluente
Como facho de luz no nevoeiro
Essa noite eu retalho o mundo inteiro
Com a peixeira amolada do repente
(p. 32)
Repare nos destaques em negrito, o ritmo comandado pelas tônicas na terceira, sexta e décima sílaba de cada verso, característicos do martelo agalopado, uma das formas desenvolvidas por Cida Pedrosa. Outro exemplo é o galope a beira-mar, que consiste na utilização das décimas também (estrofes de dez versos), só que neste caso, com onze sílabas métricas, reproduzindo a estrutura métrica idêntica a do poema anterior, ou seja, ABBAACCDDC[2].
Dois homens se encontram no espaço do leito[3]
No rumo da flecha que aponta pra Eros
Seus laços são fortes, são crentes, sinceros
Tal qual o desejo que trazem no peito
Se despem na noite em um duo perfeito
De costas se postam, se entregam pra amar
E são duas fontes de água a jorrar
Paixão de iguais feita em outra medida
Liberta e a nau que ancora na vida
De amores ungidos na beira do mar
(p. 35)
A poesia de Cida Pedrosa é como um mergulho no espaço privilegiado que a linguagem extrai das formas poéticas. Tem-se a chance de se perceber as nuances e detalhes do cinzel na busca de um significado extra material. Ela é boa de verso, e nos traz sua prosa para um dedinho de conversa. Você vem?
PEDROSA, Cida. Claranã: Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.
______________. As Filhas de Lilith. 2. ed. Recife: Claranan, 2017.
Gosto quando Milena fala dos/ homens/ que comeu durante a noite/é a única voz soante/ nesta cantina de repartição/ . Extraído de http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/pernambuco/cida_pedrosa.html. Acesso em 11/10/2018. 21h58min.
A letra representa que o primeiro verso rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto com o sétimo e o décimo e finalizando, o oitavo com o nono.
Em todos os versos do poema as tônicas encontram-se nas sílabas de número dois, cinco, oito e onze, como negritadas no primeiro verso.
Um requinte em detalhes nas palavras deste nobre poeta “Luiz Renato”. “As filhas de Lilith” tomam forma de braços fortes em pétalas, é a lírica de uma voz nesse tempo, onde as amazonas ecoam seus cantos em todo canto, contudo, “muito próximo de dinâmicas sociais que desenham violência em favor dos valores legitimados pelo patriarcado” (Pedrosa, 2017, p. 71, Apud Luiz Renato). Bravo Professor!!! Ela é boa de verso, café e prosa, e eu vou!!!
Que bom ver a obra de Cida Pedrosa ganhando os territórios brasileiros e ler seu texto, Professor. Sou leitor da obra de Cida e não me surpreendo com suas conquistas. É uma literatura orgânica e técnica. Ao tempo que é a sua voz poderosa, é também de forte domínio técnico. Parabéns pela análise, Professor.
Aqui é José Manoel Sobrinho, no Recife, Pernambuco.