Seu nome é Cida Pedrosa e nasceu em Bodocó, meio caminho entre Ouricuri e Exu, em Pernambuco. Autora de vários livros trabalha atualmente a divulgação de As Filhas de Lilith e Claranã. É o que fará no próximo dia primeiro de novembro pelo projeto Arte da Palavra, do SESC, em Cuiabá.

O primeiro é um projeto gráfico com ilustrações de Tereza Costa Rêgo e design de Jaíne Cintra, contendo um DVD produzido a partir de recriações dos poemas impressos, espécie de abecedário feminino em que as vinte e seis letras representam perfis femininos que se complementam, contraponto à moldura patriarcal. Com bastante propriedade, ao final da obra as idealizadoras do projeto “Olhares sobre Lilith” Alice Gouveia e Tuca Siqueira assinam uma espécie de posfácio em que afirmam que

Hoje, podemos afirmar que vivemos em uma primavera feminista, no entanto, muito distante da conquista e do entendimento de um lugar de fala legitimado, muito próximo de dinâmicas sociais que desenham violência em favor dos valores legitimados pelo patriarcado (Pedrosa, 2017, p. 71).

A liberdade no leito de cada verso exprime um ritmo lento que desnorteia a captura de sentido em uma forma quase líquida que o verso apresenta. O derramamento contido de um lirismo ao avesso vai aos poucos criando outras formas, enovelando sentimentos contraditórios que se complementam. É o cenário que busca trazer para o leitor de poemas aquilo de que Cida tem como certeza:

A mulher sempre esteve presente em minha poesia em conteúdo e forma. Está viva no recorte de classe, nos gritos de denúncia contra a opressão machista, no erotismo rebelde e despudorado, nas dores e lutos, nas risadas e celebrações, nos silêncios e entrelinhas (p. 10).

Arrisco a trazer para você fragmentos dessa onomástica aleatória, embora ordenada, para forjar certa linearidade aparente na construção de um caminho seguro, pavimentado pelos versos livres e brancos sepultados sob a forma de matéria viva entre gravuras que vão detalhando um universo interior (os grifos são meus).

DIANA

o jogo de luz e sombra

não camufla mais ninguém

ELISA

sempre quis fazer amor com deus

MELISSA (ou seria Milena?)

sabia-se mulher desde a infância

OFÉLIA

montou casa aos 21 anos

e já deitava com o namorado aos 15

NELY

quando completou 70 anos

teve direito a bolo caixinhas chapeuzinhos docinhos

e uma vela enorme em formato de pênis

ÍVIS

vamos falar da vida

rir da morte

ou do vizinho

OFÉLIA

exemplo de mulher resolvida

conseguiu tudo o que quis

Em Claranã, a viagem é às raízes de sua poesia, do ambiente familiar no qual se desenrola outra face de sua poética: o cordel e a cantoria de viola. O livro, prefaciado por Bráulio Tavares, é delicada iguaria sonora bem articulada com motes que embasam glosas e outras variações típicas do sertão nordestino. Tavares destaca que suas construções correm “… sem críticos à espreita, sem prêmios de emboscada, sem a vigilância dos não poetas” (TAVARES, 2015, p. 13).

Cida rebate na ferida que abre ouvidos para a escuta que vem do mundo, na natureza exuberante que arrodeia a Serra do Araripe em sua grandiosidade mundana. “me emprenhei de sons que me consomem até hoje” (PEDROSA, 2015, p. 16). Encontrei-me em muitos versos, ao perceber a presença de mote de Antonio Marinho, que conheci em janeiro deste ano na festa do seu avô, Lourival Batista, em São José do Egito, no Pajeú das Flores (PE). E em Jorge Filó, Chico Pedrosa, Maviael Melo, Lirinha, Jó Patriota, dentre outros que contornam com seus motes o empoderamento literário de Cida.

A lira é a seta

(p. 27)

 

Verás que és pó

E frágil, poeta

Sem rima e sem meta

Perdido no branco

(p. 28)

 

Eu sou tua seta

Certeira e liberta

Janela aberta

Pra um livre pensar

(p. 31)

A janela do livre pensamento pode ser uma representação simbólica do universo patriarcal, combatido pela seta, quero dizer, a lira. E de Lirinha vem o mote: essa noite eu retalho o mundo inteiro/ Com a peixeira amolada do repente.

O meu verso cavalga pra além-mar

Veste jeans, ouve rock e cantoria

Quer viver misturando a poesia

Espalhando improvisos pelo ar

Pois o fim do poeta é navegar

Por riacho revolto e inconsequente

Carne e verbo real e confluente

Como facho de luz no nevoeiro

Essa noite eu retalho o mundo inteiro

Com a peixeira amolada do repente

(p. 32)

Repare nos destaques em negrito, o ritmo comandado pelas tônicas na terceira, sexta e décima sílaba de cada verso, característicos do martelo agalopado, uma das formas desenvolvidas por Cida Pedrosa. Outro exemplo é o galope a beira-mar, que consiste na utilização das décimas também (estrofes de dez versos), só que neste caso, com onze sílabas métricas, reproduzindo a estrutura métrica idêntica a do poema anterior, ou seja, ABBAACCDDC[2].

Dois homens se encontram no espaço do leito[3]

No rumo da flecha que aponta pra Eros

Seus laços são fortes, são crentes, sinceros

Tal qual o desejo que trazem no peito

Se despem na noite em um duo perfeito

De costas se postam, se entregam pra amar

E são duas fontes de água a jorrar

Paixão de iguais feita em outra medida

Liberta e a nau que ancora na vida

De amores ungidos na beira do mar

(p. 35)

A poesia de Cida Pedrosa é como um mergulho no espaço privilegiado que a linguagem extrai das formas poéticas. Tem-se a chance de se perceber as nuances e detalhes do cinzel na busca de um significado extra material. Ela é boa de verso, e nos traz sua prosa para um dedinho de conversa. Você vem?

REFERÊNCIAS

PEDROSA, Cida. Claranã: Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2015.

______________. As Filhas de Lilith. 2. ed. Recife: Claranan, 2017.

Gosto quando Milena fala dos/ homens/ que comeu durante a noite/é a única voz soante/ nesta cantina de repartição/ . Extraído de http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/pernambuco/cida_pedrosa.html. Acesso em 11/10/2018. 21h58min.

A letra representa que o primeiro verso rima com o quarto e o quinto, o segundo com o terceiro, o sexto com o sétimo e o décimo e finalizando, o oitavo com o nono.

Em todos os versos do poema as tônicas encontram-se nas sílabas de número  dois, cinco, oito e onze, como negritadas no primeiro verso.

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Ao completar vinte anos da publicação de meu primeiro romance, fecho a trilogia prometida com este volume. Penso que esse tempo foi uma graduação na arte de escrever narrativas mais espaçadas, a que se atribui o nome de romance. Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Chibiu (2018) fecham esse compromisso. Está em meus planos a escritura de um livro de ensaios em que me debruço sobre a obra de Ana Miranda, de Letícia Wierchowski e Tabajara Ruas; o foco neste trabalho é a produção literária e suas relações com a historiografia oficial. Isso vai levar algum tempo, ou seja, no mínimo uns três ou quatro anos. Vamos fechar então com 2022, antes disso seria improvável. Acabo de lançar Gênero, Número, Graal (poemas), contemplado no II Prêmio Mato Grosso de Literatura.

2 Comentários

  1. Um requinte em detalhes nas palavras deste nobre poeta “Luiz Renato”. “As filhas de Lilith” tomam forma de braços fortes em pétalas, é a lírica de uma voz nesse tempo, onde as amazonas ecoam seus cantos em todo canto, contudo, “muito próximo de dinâmicas sociais que desenham violência em favor dos valores legitimados pelo patriarcado” (Pedrosa, 2017, p. 71, Apud Luiz Renato). Bravo Professor!!! Ela é boa de verso, café e prosa, e eu vou!!!

  2. Que bom ver a obra de Cida Pedrosa ganhando os territórios brasileiros e ler seu texto, Professor. Sou leitor da obra de Cida e não me surpreendo com suas conquistas. É uma literatura orgânica e técnica. Ao tempo que é a sua voz poderosa, é também de forte domínio técnico. Parabéns pela análise, Professor.
    Aqui é José Manoel Sobrinho, no Recife, Pernambuco.

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