Imagens que desafiam a noção de humanidade são constantemente bombardeadas nos meios de comunicação. Registros da ação humana no ambiente dão conta da dimensão do impacto que causamos enquanto espécie no planeta. Ceifamos a vida, imbuídos na missão egoica e endeusada de nós mesmos. Decidindo o destino de todos, acreditando possuir a capacidade de criação e destruição. Entidades pérfidas anunciam o fim dos tempos. Do nosso tempo. Desse tempo.

Os olhos que captam esses momentos amplificam o alcance daquilo que todos devem saber, para que o saber se transforme em ação, em mudança, em possibilidade de escolha, em conscientização. Para que transformemos esse estado de inércia e inação a que estamos submetidos pelo efeito devastador de tantas e tamanhas tragédias anunciadas ou não.

Aqui estou, na maior cidade da América Latina, tão distante do meu estado natal, Mato Grosso. E as imagens que recebo dilaceram meu coração. O sentimento de impotência. A distância. As mãos inúteis que não alcançam o real, o concreto. O Pantanal queimando. Em chamas. Chapada dos Guimarães queimando. Em chamas. Nossos santuários naturais, nossos lugares no mundo, ardendo intensamente.

Margens da Transpantaneira em Poconé, onde o fogo se alastrou de maneira descontrolada (29/08). Foto: Izan Petterle

O Pantanal registrou o segundo maior número de queimadas da História neste mês de agosto, desde o início do monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 1998. Mais de 5 mil hectares de área de proteção já queimaram em Chapada dos Guimarães. O cenário é de desolação e catástrofe.

Pantanal em chamas – Foto: Izan Petterle

A árdua tarefa de fotografar 

Realizando o importante trabalho de fotografia documental, Izan Petterle voltou ao seu habitat natural, o Pantanal de Poconé, lugar que fotografa há quase 40 anos para fazer um balanço do estrago causado pela maior tragédia ambiental que atingiu a região. Suas fotos chegaram até mim como um soco no estômago. O fotógrafo cedeu as imagens e os relatos disponibilizados em seu Facebook sobre a vida das comunidades impactadas para compor essa reportagem.

Matéria de sua autoria publicada na revista National Geographic Brasil em maio de 2011, intitulada “Caubóis das Águas”, com texto do cientista e pesquisador da Embrapa, Evaristo de Miranda, antevia a situação atual. A reportagem explica o processo de colonização da região, as espécies de cavalos e bois, e sua relação direta com a natureza e as comunidades locais.

Vaqueiros tocam o gado no rio Pixaim para fugir dos focos de incêndios. Foto: Izan Petterle
Amanhecer na Transpantaneira: cavalo em fuga dos incêndios nas fazendas, onde a estrada virou refúgio para os animais. Foto: Izan Petterle

“O boi é o bombeiro do Pantanal. O bicho age na prevenção dos incêndios ao consumir a vegetação cujo destino seria o de se tornar palha seca e comburente. A redução dos rebanhos, portanto, é sinônimo de acúmulo de capim seco, aumento das queimadas e, com o fogo, das emissões de metano e dióxido de carbono, gases de efeito estufa. Se o capim não queima, é ainda pior – ele será recoberto pelas águas. Apodrece e boa parte de sua matéria orgânica vira metano”, destaca a revista.

Pantanal e pantaneiros, uma lição de vida e superação. Fazenda Santa Felicidade, Poconé-MT. Foto: Izan Petterle.

“Há mais de 300 anos, bovinos e equinos modificaram a vegetação do Pantanal e geraram novos equilíbrios agroambientais. A região é reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O objetivo é o de assegurar a herança de valores do passado. Entre os tesouros do reino das águas, além da fauna e da flora, estão o cavalo, o gado e o homem pantaneiro – e todo seu legado cultural e ecológico”.”, explica o texto da National Geographic.

Entre poeira e fumaça, amanhece o dia na Fazenda Santa Felicidade no meio do Pantanal de Poconé. Os vaqueiros iniciam a lida diária com a tropa de equinos da raça pantaneira. Foto: Izan Petterle

A degradação ambiental

“Nunca tinha visto o Pantanal tão seco como está agora, nem quem aqui vive. As lagoas e corixos não existem mais em sua grande maioria. As mudanças climáticas são os principais fatores que agravaram terrivelmente esse incêndio generalizado que devasta o Pantanal. O regime de chuvas que alimenta esse ecossistema, que vem da Amazônia pelos chamados rios voadores, não tem mais a intensidade que tinha”, conta Izan em seus relatos.

Foto Izan Petterle
Foto Izan Petterle

“Os pantaneiros estão atônitos por essa tragédia, nunca tinham visto nada parecido. A sensação é de uma espécie de luto coletivo, a consternação é geral”, compartilha.

Foto Izan Petterle

“Esse bezerro teve as patas queimadas e não vai sobreviver por falta de assistência veterinária e os urubus já sabem disso. Essa imagem triste e real simboliza o abandono ao qual o Pantanal está submetido nesse momento, durante o maior incêndio florestal de nossa História. Com exceção dos bombeiros e de alguns carros de órgãos ambientais, que pouco podem fazer para conter o avanço das chamas, a ausência do Estado é avassaladora. Mesmo com a ajuda de voluntários que aqui estão dando o melhor de si para ajudar animais silvestres e domésticos que estão feridos, a situação é desesperadora. Precisamos urgentemente de hospitais veterinários de campanha e toneladas de alimentos como milho, frutas e outros produtos que possam amenizar a fome dos animais sobreviventes. Não tem ninguém em campo vindo de universidades, secretarias de agricultura e outros órgãos públicos que possam cumprir seu papel humanitário nesse momento único da História. Vão alegar falta de verbas, a burocracia e o trabalho remoto por causa da pandemia, esquecendo de todos que aqui estão fazendo o que podem para ajudar no que for possível”, narra o fotógrafo.

O rio Pixaim, mesmo com baixo nível de água, ainda é um santuário de refúgio para a vida selvagem. Um Anjo veio para nos aliviar do sofrimento em ver tanta devastação causada pelo fogo. Foto: Izan Petterle
Rio Cassange – Foto Izan Petterle

“Leito do Rio Cassange, no coração do Pantanal Norte, hoje (30/08) antes de amanhecer. Por incrível que pareça, ao contrário da imagem romantizada que muitas pessoas tem de profissionais da fotografia documental, estamos aqui por conta própria, sem receber nenhum tipo de apoio de revistas ou jornais, nem que seja para ajudar a divulgar o trabalho que estamos desenvolvendo a duras penas. Essa é uma atividade monástica para quem acredita no poder da fotografia como ferramenta capaz de melhorar o mundo”.

Foto Izan Petterle

“Desolação é pouco para descrever o sentimento de todos que estão envolvidos nessa situação trágica. Ninguém que encontrei, das pessoas nascidas e criadas nesse ambiente, jamais viram tragédia ambiental desse quilate”, continua.

Foto Izan Petterle

“A sensação que eu tenho é que jogaram uma bomba atômica de mil megatons sobre o Pantanal. É a única imagem que me vem à cabeça. Rodamos uns 80 km, entre os km 60 e 140, sentido Porto Jofre, logo após um incêndio que calcinou os dois lados da estrada e que só posso descrever de forma metafórica. Impossível mensurar o número de animais que morreram instantaneamente ou sucumbirão a ferimentos ou doenças ao longo das semanas ou meses”, lamenta Izan.

Para quem deseja ajudar na luta para minimizar a tragédia no Pantanal, a Ecotrópica é uma entidade séria e comprometida com a preservação do bioma e do bem-estar do povo pantaneiro. Trabalham com doações e ajuda de trabalho voluntário.

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Marianna Marimon, 30, escritora antes de ser jornalista, arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores. Formada em jornalismo (UFMT) e pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).

2 Comentários

  1. […] A luta principal, naqueles anos de 1980, era pela criação do  Parque Nacional de Chapada dos Guimarães. A busca era de fortalecimento de uma luta pelo meio ambiente que avançou localmente com uma galera que movimentava a política de forma mais alternativa: Mario Friedlander, Regina e Mobi, Maria Lúcia, Malu, Ari, Manoel Português, Kell, Alice, Décio, Juarez e tantos outros parceiros amigos. Companheiros de luta com ideias que apontavam para um futuro de maior equilíbrio no planeta. Agora, o Jamacá grita por socorro, o Pantanal, o cerrado, a Amazônia, Mato Grosso, arde em chamas. […]

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