Estamos buscando textos críticos que fizeram parte da constituição de uma cena cultural notadamente urbana em Cuiabá, dos anos de 1980 para cá, como parte da construção da cidade, tipo olhares sobre a cidade – publicaremos uma série de textos que contribuíram para o desenvolvimento cultural da capital mato-grossense – memória.
um olhar de roberto victório (sobre um show d’osviralata em novembro de 2010)
Casa “Fora do Eixo”, 23h30 de quinta-feira (dia de toda realização iniciática, dia dos espíritos),e foi isso que pudemos ver/ouvir desses maravilhosos “viralatas”, cães-sem-dono (ainda bem!) que implodiram o pequeno, cavernoso e introspectivo espaço encravado no coração da velha cidade de Nosso SenhordoBomJesusdeCuiabá. Assim como na Cuiabá, e Brasil colônia, resgatando a efervescência das sonoridades do século XVIII desse imenso país, só que às avessas. Um retorno ao passado no que se refere à expectativa de ouvir o que se produz, agora, já! Impossível ficar imóvel diante da impressionante performance dos integrantes com seus improvisos, seus gestos ritualísticos, sons guturais que vazaram as texturas instrumentais e as “recitâncias” que numa ambiência quase responsórica conectou a todos, seja no palco, seja na plateia (novamente o perfil sonoro do Brasil colônia, das cantorias e da música a serviço de um ofício). Eduardo Ferreira, como um hierofante, é o pivô dessa egrégora que aglutina músicos excepcionais por aventuras sonoro-literárias-performáticas que simbiotizam o universo “viralatístico” como um caldeirão criativo/improvisativo – orgiástico/caótico. Um jogo dual nesta trama conectiva de sonoridades que se traduz a partir da capacidade de cada músico lidar com o caos (criativo) e com a orgia (improvisativa) e a impressionante conexão entre eles a cada performance. Em alguns momentos tem-se a impressão de uma ambiência ritual – pelo envolvimento gestual – regada a sonoridades; a música, nesses momentos, impressionantemente, passa para segundo plano sem perder a importância. Esse é o caminho! Esse é o viés para uma música que ultrapassa os limites impostos pela máquina que ensina o que é “bom” para os ouvintes. Osviralata, Eduardo Ferreira e os apóstolos/ouvintes que estavam na quinta-feira iniciática na velha Cuiabá – conectados por séculos de sonoridades esquecidas – se tornaram um só organismo sonoro, seja tocando, ou envolvidos pelas vibrações que ocupavam o pequeno espaço-claustro, como as vísceras de um monastério que absorvem as sonoridades do entorno sagrado. A cada fala, a cada acorde das incríveis violas caipira, a cada improviso virtuosístico da guitarra, a cada respiração e inflexão dos cantos/recicantos, sentia-se a força do grupo não como um mero aglutinar de sonoridades avulsas e sim como percursos individuais que simbiotizavam-se em texturas polifônicas complexas, encorpadas pela pujante rítmica imposta pelo baixo e pela bateria. Ótimos! Enfim, uma noite fantástica de sonoridades envolventes para os ouvintes/monges que decidiram ouvir o velado entorno da cidade secular pela performance de “osviralata”.
Roberto Victório é mestre em composição e doutor em etnomusicologia